Saint-Clair Cordeiro da Trindade JúniorGeógrafo. Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Introdução
No entendimento do que seja a Amazônia, duas posições têm se feito notar. Uma delas trata a Amazônia a partir de uma pretensa unicidade. Fala-se da região como um espaço homogêneo. Na verdade, trata-se de uma idéia pronta e acabada do que seja a Amazônia, inventada a partir de pressuposto a-históricos, sem a presença do homem e de sua história, com critérios de delimitação rígidos. Em um outro pólo, contrapondo-se a essa concepção "formatada" de região, fala-se de Amazônia como um conceito arbitrário, uma representação imposta, em geral por quem a olha de fora. Denomina-se como único o que é diverso, impõe-se uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades. Nesta concepção, a Amazônia é uma invenção, que não é capaz de explicar muita coisa.Se a primeira postura é problemática porque desconsidera a natureza humana e social do espaço geográfico, a segunda postura nega uma realidade objetiva que, na maioria das vezes, serve de referência para compreendemos particularidades importantes que esse espaço do território brasileiro e sul-americano apresenta na sua interação com o mundo.Gostaríamos, então, aqui, de partir do pressuposto de que para compreender a Amazônia é necessário considerá-la como uma região, no sentido geográfico do termo. E quando falamos em sentido geográfico de região, estamos nos referindo a uma certa porção do espaço que se caracteriza por uma dada particularidade. Não significa, então, tratar de unicidade geográfica, de espaço homogêneo, nem tampouco em falarmos daquilo que é único, das singularidades geográficas (Corrêa, 1997).A idéia de homogeneidade geográfica, acreditamos, não nos ajuda a compreender um espaço, como o amazônico, que é um espaço muito diverso, tanto do ponto de vista da natureza, como do ponto de vista da existência humana. Por outro lado, também não se trata de falar de individualidades ou de singularidades, que estão mais relacionadas com o conceito de lugar, que propriamente com o de região. Sabemos muito bem da existência de diversas Amazônias, ou seja, de diversas singularidades que podem ser reconhecidas nessa dimensão continental que chamamos de Amazônia, mas é principalmente a partir de suas particularidades que gostaríamos de identificá-la como uma região. Nesse sentido, a proposta de entendimento que estamos aqui procurando esboçar, busca reconhecer a Amazônia como um espaço particular, como uma região, que serve de mediação entre o universal (o mundo) e o singular (o lugar).Considerando, então, a impropriedade de tratarmos a Amazônia como espaço homogêneo e a dificuldade de situá-la no contexto global reconhecendo apenas singularidades, a pergunta que nos cabe, aqui, seria: quais as particularidades que nos ajudam a compreender a Amazônia enquanto uma região? Esta resposta, nos parece, tem sido respondida de diferentes maneiras ao longo do tempo. 2. A Amazônia como um ecossistemaUma primeira particularidade que tem sido bastante divulgada desde a chegada dos primeiros colonizadores nesse espaço que estamos chamando de Amazônia, tem sido, sem dúvida, pautada no reconhecimento da natureza como conformadora de um quadro geográfico muito próprio. Trata-se, portanto, de enxergar a Amazônia como um ecossistema, no qual o domínio da floresta equatorial, imbricada a elementos como o clima e a hidrografia, destacam a particularidade conferida à região. O conceito de Pan-Amazônia, muito utilizado para fins de cooperação econômica entre os países da América do Sul onde domina a floresta equatorial, está assentado nessa idéia de Amazônia.Sem dúvida, várias críticas foram dirigidas ao reconhecimento da Amazônia enquanto ecossistema apenas. Primeiro porque privilegia um quadro natural, anterior a presença do homem, desconsiderando processos históricos e identidades culturais que conformaram um espaço humanizado, cuja caracterização vai além do espaço natural. Depois, porque desconsidera a formação territorial e sua dimensão humana e histórica como elemento importante para compreender o papel do espaço amazônico no Brasil e no mundo. Essa concepção de região natural, passou a ser negada, em grande parte, por estar assentada muitas vezes nos rigores conceituais do determinismo geográfico, no qual a região é pensada sob uma perspectiva a-histórica e o espaço é tido como algo dado pela natureza, determinando a dinâmica do homem como ser social.Análises mais recentes, entretanto, em especial no âmbito da Geografia Física, buscam tratar a importância da região como ecossistema, de maneira a compreender mesmo o processo de formação do espaço brasileiro e a forma de apropriação da natureza no interior desse processo. É assim, pois, que alguns autores, ao tratarem dos domínios morfoclimáticos no Brasil, consideram a alteração do quadro natural a partir do processo histórico de apropriação da natureza. O domínio morfoclimático amazônico é um tentativa de conferir particularidade a essa porção do território brasileiro.Nesse sentido, mesmo considerando a pertinência do posicionamento que nega a Amazônia como ecossistema apenas, pensamos ser impossível desconsiderar a natureza como elemento importante na compreensão da particularidade regional amazônica. Proceder de outra forma, significaria descartar um elemento de grande importância no reconhecimento da identidade regional.3. A Amazônia como espaço estratégico de açãoOutra noção de Amazônia, baseia-se no reconhecimento da mesma como espaço estratégico para a ação e o planejamento do Estado. É com base nessa preocupação que surge o conceito de Amazônia Legal, assimilado e divulgado nos órgãos de planejamento e de desenvolvimento regional. Essa é uma noção de região, ou diríamos mais, é um discurso sobre a região, bastante presente nos documentos que estabelecem ações e intervenções nesse espaço regional. É o que se verifica nos diversos Planos de Desenvolvimento da Amazônia - PDAs (Nahum, 1999).A particularidade da região nessa perspectiva, segundo Nahum (1991), parece ser reconhecida principalmente por elementos como:a) A riqueza de recursos naturais a ser explorada. Nesta perspectiva, a natureza é considerada como matéria-prima, explorada através do solo, do subsolo, dos recursos hídricos, etc.b) A predominância de espaços vazios que devem ser ocupados. O espaço não é tido na sua dimensão social, mas como base material a ser ocupada, sendo, portanto, um espaço sem homem, a-histórico. Trata-se de um espaço bem próximo da visão newtoniana de espaço, que se define como um recipiente, absoluto, independente, infinito, tridimensional, fixo, uniforme. Em outras palavras, um substrato passivo para o desenvolvimento dos fenômenos. c) O Homem na Amazônia, como região de planejamento, é tratado como recurso humano, como população, como contigente de mão-de-obra, de pessoas. Não se deixa claro se esse homem é negro, branco, cafuzo, mulato, mameluco ou caboclo, assim como não se identifica seus tempos e seus espaços. Suas culturas particulares não são sequer mencionadas. Trata-se de um homem genérico, abstrato, homogêneo. É um homem-objeto que ocupa espaços vazios, sendo apenas um habitante e não um criador de espaços.Conforme ainda Nahum (1999), o que prevalece nessa concepção de espaço é a idéia de uma região funcional onde o novo e o velho se polarizam e se estranham. O velho se apresenta como obstáculo ao novo, daí a necessidade de ser superado. Revela-se, também, como parte dessa particularidade regional, a exuberância de recursos, a existência de uma população irregularmente distribuída e a necessidade e possibilidade de complementaridade com outras regiões, a fim de propagar a modernização e a integração. Daí vem a necessidade de se estabelecer "pólos de desenvolvimento" como irradiadores de modernização e como fatores de integração.A particularidade da região, segundo essa perspectiva, é, na verdade, uma área diferenciada onde se agrupam uma natureza que é desumanizada, um espaço neutro, sem relações, e um homem-objeto a ser manipulado (Nahum, 1999).4. A Amazônia como fronteiraMuito difundida nas abordagens geográficas mais recentes, a Amazônia como fronteira, é, na verdade, considerada como o mais recente espaço de expansão e projeção das relações capitalistas de produção.Nessa interpretação, a Amazônia tornou-se uma verdadeira fronteira econômica de ação do capital e de controle político do Estado no processo de estruturação do território brasileiro. O sentido de região, nessa concepção, considera que: "fronteira ... não é sinônimo de terras devolutas, cuja apropriação econômica é franqueada a pioneiros ou camponeses. É um espaço também social e político, que pode ser definido como um espaço não plenamente estruturado, potencialmente gerador de realidades novas (...) É, pois, para a nação, símbolo e fato político de primeira grandeza, como espaço de projeção para o futuro, potencialmente alternativo. Para o capital, a fronteira tem valor como espaço onde é possível implantar rapidamente novas estruturas e como reserva mundial de energia (Becker, 1990, p.11).Os estudos mais recentes de Becker (1996 e 1997) buscam mostrar também as mudanças nas estratégias de ocupação do espaço regional amazônico. Para a autora, a grande fronteira hoje assume não só um novo significado, como também uma nova escala, que expressam a transição para um novo padrão de inserção do Brasil no sistema mundial. Ao vetor técnico-industrial, responsável pela estruturação do espaço regional enquanto "economia de fronteira", junta-se um outro, o vetor tecno-ecológico, que pressupõe acrescentar o avanço tecnológico na exploração e preservação dos atributos ecológicos da região. A Amazônia, segundo essa concepção, é o espaço em estruturação, para onde as relações capitalistas de produção tendem a se expandir e se consolidar, alterando, sobremaneira, a organização sócio-espacial anterior. Fala-se, então, de diversas fronteiras compondo a fronteira econômica: a madeireira, a agrícola, a industrial, a energética, a urbana, dentre outras. Traz também implícita a idéia de ocupação de novas terras e de uma nova direção do processo de colonização e de incorporação de novos espaços à economia de mercado. Apresenta-se, ainda, como região de novas possibilidades, seja por parte do capital na exploração dos recursos, seja por parte da força de trabalho, que define novas formas de apropriação territorial no interior do espaço em estruturação. A fronteira é também definida, como sugere Martins (1996 e 1997) ao retomar a natureza conceitual do termo, como sendo o espaço por excelência de conflito social, sendo, por isso, essencialmente o lugar da alteridade:"À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si... Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e do desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História (...) A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica do nós. Quando a História passa a ser a nossa História, a História da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos e nos devorou" (Martins, 1996, p.27).Mais recentemente, esta noção de Amazônia como fronteira vem sendo questionada dada a natureza conceitual de que se reveste. É assim que Nogueira (2001) pontua alguns elementos para questionar o uso tão corrente dessa noção de Amazônia. A noção de fronteira, para Nogueira (2001), é objeto de um uso acrítico, seja por intelectuais de fora da região, seja por intelectuais de dentro da própria região.São argumentos desse questionamento:a) Os diversos significados atribuídos ao termo levaram a sua vulgarização, dificultando, mais do que facilitando, a compreensão da região e de sua articulação com o território nacional.b) Trata-se de uma noção construída de fora, e que não permite a leitura do espaço pelos atores sociais internos.c) Traz embutida também a idéia de uma centralidade dominante, na qual a fronteira está sempre fora e na periferia, caracterizando uma visão etnocêntrica de espaço geográfico. d) Por isso mesmo possui um significado desagradável e pejorativo dado, em regra geral, por quem está no centro; significado este que acaba sendo transmitido a sua população.Se a noção de região de fronteira está incompleta e não consegue explicar tudo, esta é uma evidência inquestionável. Na verdade, o que se vê, em especial na Geografia, é que essa noção traz como tripé: a) o destaque a uma preocupação econômica dos processos que modelam o espaço regional, b) o impacto do modo de produção capitalista e suas formas recentes de reprodução nas organizações espaciais anteriores, e c) a necessidade de explicar o desenvolvimento desigual e combinado no interior do território nacional. Isto não nos autoriza, entretanto, a descartar o conceito como uma das possibilidades de explicar processos a que ele se propõe a compreender. A existência de uma Divisão Territorial do Trabalho no interior do território nacional nos parece revelar a constituição da Amazônia como fronteira econômica, e fronteira econômica não homogênea, diga-se de passagem; fato este também enfatizado por diversos autores que conceberam a região como fronteira, a exemplo de Becker (1990), que reconhece diferenças internas, como a Amazônia Oriental e a Amazônia Meridional. Ou, ainda, como faz Magnano (1990), que diferencia a Amazônia internamente em: 1. região de influência direta de Belém. 2. região de influência direta de Manaus. 3. região de disputa entre formas capitalistas de produção e formas alternativas de exploração do espaço produtivo, 4. região da fronteira norte, 5. região de predomínio de estruturas tradicionais em lento processo de transformação.Mesmo a discussão política inerente a esse processo parece não ser negligenciada pelos autores que se utilizam dessa noção para compreender o que seja a Amazônia, faltando, entretanto, uma maior discussão da dimensão cultural inerente a essa noção de região. Ainda que incompleta, como bem sugere Nogueira (2001), esta é, sem dúvida, uma noção de Amazônia que tem apontado elementos interessantes para se entender a particularidade que caracteriza a Amazônia enquanto espaço socialmente produzido, seja no contexto nacional, seja no contexto internacional. Acreditamos, entretanto, ser necessário avançar nesse empreendimento. É nessa preocupação que a seguir serão esboçados elementos que consideramos importantes para a compreensão da Amazônia como região. 5. À Guisa de Conclusão e de Proposição.A necessidade de superação de discursos sobre a região ou a partir da região e a necessidade de avançarmos na proposição conceitual é algo que tem nos exigido cada vez mais pensar uma concepção de Amazônia.O que considerar nessa conceituação? De início, faz-se necessário pensar na importância do conceito de região colocando o homem no centro dessa discussão para compreender a Amazônia. Nesse sentido, a particularidade regional é dada pelo papel dos homens na produção social do espaço geográfico amazônico. Ainda que pensar as realidades amazônicas a partir da noção de lugar seja de extrema importância nos dias de hoje, não se trata de suplantar o conceito de região pelo de lugar, como se a Amazônia fosse repleta somente de singularidades, ou ainda, que esse conjunto de singularidades não configurassem conjuntamente qualquer particularidade.O conceito de região serve de mediação entre processos gerais e singulares do ponto de vista histórico e econômico, como também reconhece, no espaço, uma dimensão e um recorte mediador que, no nosso entender, traz uma grande força política que pode ser apoiada na identidade regional.O papel do homem na configuração da identidade regional não pode ser distanciado de um outro elemento que nos parece de grande importância para compreender a Amazônia: a presença da natureza e a forte ligação do homem com ela. A natureza, aqui considerada, não é a natureza isolada, mas a natureza reconhecida a partir de uma identidade de vida, ou a presença da natureza ligada a várias identidades de vida e de culturas, presentes no interior da própria região. A predominância e a combinação de várias temporalidades parece ser outro elemento da particularidade regional. Assim, não se trata apenas de uma temporalidade hegemônica, a capitalista, que se impõe e que se caracteriza principalmente como processo econômico, mas inclui também tempos lentos, como aqueles das populações tradicionais. A partir dessa perspectiva, uma outra particularidade pode ser reconhecida, a particularidade das intensidades dos conflitos que se dão em decorrência do convívio dessas diversas temporalidades e que também define uma diversidade de territorialidades. Em função da pluralidade de relações com a natureza, das diversas temporalidades e espacialidades que aqui se apresentam, é uma sociedade territorializada que se caracteriza também pela pluralidade de resistências, sejam elas operárias, indígenas ou camponesas. Quem não lembra de Chico Mendes na defesa das reservas extrativistas; da índia Tuíra em Altamira resistindo à construção da Usina de Belo Monte no final da década de 80; dos negros do Trombetas que lutam pelos seus recursos naturais e pela sua cultura; dos sem terra do massacre de Eldorado; dentre muitas outras resistências que marcam a pluralidade de temporalidades e de conflitos, nos quais se coloca como centro da questão a defesa da terra, da natureza e da cultura contra temporalidades hegemônicas. Nesse sentido, a fronteira não é apenas o espaço do externo, do que se impõe, mas também do interno, do que resiste.Alia-se a esses, outro elemento que define a particularidade regional. A intensidade da expropriação dos recursos, da terra, da cultura; com uma forte, expressiva e evidente presença do Estado que, inclusive, insere outras identidades a serem reconhecidas como identidades amazônicas. É o caso do ex-norte de Goiás e também do Oeste do Maranhão. Se trabalharmos com a dimensão das representações das pessoas que vivem nesses espaços, dificilmente eles se definirão como não-amazônidas. Esse tipo de representação tem a ver com a política do Estado que os inseriu nessa particularidade regional.Outro elemento que nos ajuda a pensar a particularidade regional é o fato de a Amazônia se constituir em região de perdas, mais do que espaço de ganhos e de comando. Aqui, mais uma vez, fica clara a importância de considerar a estruturação do espaço amazônico como região de fronteira; do contrário, teríamos dificuldade de compreender as formas e intensidades da expansão capitalista no território brasileiro e mundial, que implica em movimentos e processos que vêm de fora. E, nessa concepção, a Amazônia em hipótese alguma pode ser definida como centro de comando e de origem dos processos no quais ela historicamente, e forçosamente, teve que se inserir, ainda que com manifestações de resistências.Por fim, a Amazônia, ainda que seja pontuada de tempos rápidos, e que definem espaços de altas luminosidades, como nos ensinou teoricamente Santos (1994), é, sem dúvida, o espaço, a região, onde há um predomínio do tempo lento. Aqui, este atributo não está sendo usado de maneira pejorativa, mas como um qualificativo de potencialidade política e de vida; afinal, a força dos fracos, conforme nos ensinou Santos (1994), é o seu tempo lento. É o tempo lento que nos faz reconhecer vivências, sociabilidades e, por conseguinte, identidades e, também, resistências.