quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Amazônia e a dimensão humana de sua geografia

Saint-Clair Cordeiro da Trindade JúniorGeógrafo. Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor Adjunto do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Introdução
No entendimento do que seja a Amazônia, duas posições têm se feito notar. Uma delas trata a Amazônia a partir de uma pretensa unicidade. Fala-se da região como um espaço homogêneo. Na verdade, trata-se de uma idéia pronta e acabada do que seja a Amazônia, inventada a partir de pressuposto a-históricos, sem a presença do homem e de sua história, com critérios de delimitação rígidos. Em um outro pólo, contrapondo-se a essa concepção "formatada" de região, fala-se de Amazônia como um conceito arbitrário, uma representação imposta, em geral por quem a olha de fora. Denomina-se como único o que é diverso, impõe-se uma identidade única a uma pluralidade de culturas, de naturezas e de sociedades. Nesta concepção, a Amazônia é uma invenção, que não é capaz de explicar muita coisa.Se a primeira postura é problemática porque desconsidera a natureza humana e social do espaço geográfico, a segunda postura nega uma realidade objetiva que, na maioria das vezes, serve de referência para compreendemos particularidades importantes que esse espaço do território brasileiro e sul-americano apresenta na sua interação com o mundo.Gostaríamos, então, aqui, de partir do pressuposto de que para compreender a Amazônia é necessário considerá-la como uma região, no sentido geográfico do termo. E quando falamos em sentido geográfico de região, estamos nos referindo a uma certa porção do espaço que se caracteriza por uma dada particularidade. Não significa, então, tratar de unicidade geográfica, de espaço homogêneo, nem tampouco em falarmos daquilo que é único, das singularidades geográficas (Corrêa, 1997).A idéia de homogeneidade geográfica, acreditamos, não nos ajuda a compreender um espaço, como o amazônico, que é um espaço muito diverso, tanto do ponto de vista da natureza, como do ponto de vista da existência humana. Por outro lado, também não se trata de falar de individualidades ou de singularidades, que estão mais relacionadas com o conceito de lugar, que propriamente com o de região. Sabemos muito bem da existência de diversas Amazônias, ou seja, de diversas singularidades que podem ser reconhecidas nessa dimensão continental que chamamos de Amazônia, mas é principalmente a partir de suas particularidades que gostaríamos de identificá-la como uma região. Nesse sentido, a proposta de entendimento que estamos aqui procurando esboçar, busca reconhecer a Amazônia como um espaço particular, como uma região, que serve de mediação entre o universal (o mundo) e o singular (o lugar).Considerando, então, a impropriedade de tratarmos a Amazônia como espaço homogêneo e a dificuldade de situá-la no contexto global reconhecendo apenas singularidades, a pergunta que nos cabe, aqui, seria: quais as particularidades que nos ajudam a compreender a Amazônia enquanto uma região? Esta resposta, nos parece, tem sido respondida de diferentes maneiras ao longo do tempo. 2. A Amazônia como um ecossistemaUma primeira particularidade que tem sido bastante divulgada desde a chegada dos primeiros colonizadores nesse espaço que estamos chamando de Amazônia, tem sido, sem dúvida, pautada no reconhecimento da natureza como conformadora de um quadro geográfico muito próprio. Trata-se, portanto, de enxergar a Amazônia como um ecossistema, no qual o domínio da floresta equatorial, imbricada a elementos como o clima e a hidrografia, destacam a particularidade conferida à região. O conceito de Pan-Amazônia, muito utilizado para fins de cooperação econômica entre os países da América do Sul onde domina a floresta equatorial, está assentado nessa idéia de Amazônia.Sem dúvida, várias críticas foram dirigidas ao reconhecimento da Amazônia enquanto ecossistema apenas. Primeiro porque privilegia um quadro natural, anterior a presença do homem, desconsiderando processos históricos e identidades culturais que conformaram um espaço humanizado, cuja caracterização vai além do espaço natural. Depois, porque desconsidera a formação territorial e sua dimensão humana e histórica como elemento importante para compreender o papel do espaço amazônico no Brasil e no mundo. Essa concepção de região natural, passou a ser negada, em grande parte, por estar assentada muitas vezes nos rigores conceituais do determinismo geográfico, no qual a região é pensada sob uma perspectiva a-histórica e o espaço é tido como algo dado pela natureza, determinando a dinâmica do homem como ser social.Análises mais recentes, entretanto, em especial no âmbito da Geografia Física, buscam tratar a importância da região como ecossistema, de maneira a compreender mesmo o processo de formação do espaço brasileiro e a forma de apropriação da natureza no interior desse processo. É assim, pois, que alguns autores, ao tratarem dos domínios morfoclimáticos no Brasil, consideram a alteração do quadro natural a partir do processo histórico de apropriação da natureza. O domínio morfoclimático amazônico é um tentativa de conferir particularidade a essa porção do território brasileiro.Nesse sentido, mesmo considerando a pertinência do posicionamento que nega a Amazônia como ecossistema apenas, pensamos ser impossível desconsiderar a natureza como elemento importante na compreensão da particularidade regional amazônica. Proceder de outra forma, significaria descartar um elemento de grande importância no reconhecimento da identidade regional.3. A Amazônia como espaço estratégico de açãoOutra noção de Amazônia, baseia-se no reconhecimento da mesma como espaço estratégico para a ação e o planejamento do Estado. É com base nessa preocupação que surge o conceito de Amazônia Legal, assimilado e divulgado nos órgãos de planejamento e de desenvolvimento regional. Essa é uma noção de região, ou diríamos mais, é um discurso sobre a região, bastante presente nos documentos que estabelecem ações e intervenções nesse espaço regional. É o que se verifica nos diversos Planos de Desenvolvimento da Amazônia - PDAs (Nahum, 1999).A particularidade da região nessa perspectiva, segundo Nahum (1991), parece ser reconhecida principalmente por elementos como:a) A riqueza de recursos naturais a ser explorada. Nesta perspectiva, a natureza é considerada como matéria-prima, explorada através do solo, do subsolo, dos recursos hídricos, etc.b) A predominância de espaços vazios que devem ser ocupados. O espaço não é tido na sua dimensão social, mas como base material a ser ocupada, sendo, portanto, um espaço sem homem, a-histórico. Trata-se de um espaço bem próximo da visão newtoniana de espaço, que se define como um recipiente, absoluto, independente, infinito, tridimensional, fixo, uniforme. Em outras palavras, um substrato passivo para o desenvolvimento dos fenômenos. c) O Homem na Amazônia, como região de planejamento, é tratado como recurso humano, como população, como contigente de mão-de-obra, de pessoas. Não se deixa claro se esse homem é negro, branco, cafuzo, mulato, mameluco ou caboclo, assim como não se identifica seus tempos e seus espaços. Suas culturas particulares não são sequer mencionadas. Trata-se de um homem genérico, abstrato, homogêneo. É um homem-objeto que ocupa espaços vazios, sendo apenas um habitante e não um criador de espaços.Conforme ainda Nahum (1999), o que prevalece nessa concepção de espaço é a idéia de uma região funcional onde o novo e o velho se polarizam e se estranham. O velho se apresenta como obstáculo ao novo, daí a necessidade de ser superado. Revela-se, também, como parte dessa particularidade regional, a exuberância de recursos, a existência de uma população irregularmente distribuída e a necessidade e possibilidade de complementaridade com outras regiões, a fim de propagar a modernização e a integração. Daí vem a necessidade de se estabelecer "pólos de desenvolvimento" como irradiadores de modernização e como fatores de integração.A particularidade da região, segundo essa perspectiva, é, na verdade, uma área diferenciada onde se agrupam uma natureza que é desumanizada, um espaço neutro, sem relações, e um homem-objeto a ser manipulado (Nahum, 1999).4. A Amazônia como fronteiraMuito difundida nas abordagens geográficas mais recentes, a Amazônia como fronteira, é, na verdade, considerada como o mais recente espaço de expansão e projeção das relações capitalistas de produção.Nessa interpretação, a Amazônia tornou-se uma verdadeira fronteira econômica de ação do capital e de controle político do Estado no processo de estruturação do território brasileiro. O sentido de região, nessa concepção, considera que: "fronteira ... não é sinônimo de terras devolutas, cuja apropriação econômica é franqueada a pioneiros ou camponeses. É um espaço também social e político, que pode ser definido como um espaço não plenamente estruturado, potencialmente gerador de realidades novas (...) É, pois, para a nação, símbolo e fato político de primeira grandeza, como espaço de projeção para o futuro, potencialmente alternativo. Para o capital, a fronteira tem valor como espaço onde é possível implantar rapidamente novas estruturas e como reserva mundial de energia (Becker, 1990, p.11).Os estudos mais recentes de Becker (1996 e 1997) buscam mostrar também as mudanças nas estratégias de ocupação do espaço regional amazônico. Para a autora, a grande fronteira hoje assume não só um novo significado, como também uma nova escala, que expressam a transição para um novo padrão de inserção do Brasil no sistema mundial. Ao vetor técnico-industrial, responsável pela estruturação do espaço regional enquanto "economia de fronteira", junta-se um outro, o vetor tecno-ecológico, que pressupõe acrescentar o avanço tecnológico na exploração e preservação dos atributos ecológicos da região. A Amazônia, segundo essa concepção, é o espaço em estruturação, para onde as relações capitalistas de produção tendem a se expandir e se consolidar, alterando, sobremaneira, a organização sócio-espacial anterior. Fala-se, então, de diversas fronteiras compondo a fronteira econômica: a madeireira, a agrícola, a industrial, a energética, a urbana, dentre outras. Traz também implícita a idéia de ocupação de novas terras e de uma nova direção do processo de colonização e de incorporação de novos espaços à economia de mercado. Apresenta-se, ainda, como região de novas possibilidades, seja por parte do capital na exploração dos recursos, seja por parte da força de trabalho, que define novas formas de apropriação territorial no interior do espaço em estruturação. A fronteira é também definida, como sugere Martins (1996 e 1997) ao retomar a natureza conceitual do termo, como sendo o espaço por excelência de conflito social, sendo, por isso, essencialmente o lugar da alteridade:"À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si... Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e do desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História (...) A fronteira só deixa de existir quando o conflito desaparece, quando os tempos se fundem, quando a alteridade original e mortal dá lugar à alteridade política, quando o outro se torna a parte antagônica do nós. Quando a História passa a ser a nossa História, a História da nossa diversidade e pluralidade, e nós já não somos nós mesmos porque somos antropofagicamente nós e o outro que devoramos e nos devorou" (Martins, 1996, p.27).Mais recentemente, esta noção de Amazônia como fronteira vem sendo questionada dada a natureza conceitual de que se reveste. É assim que Nogueira (2001) pontua alguns elementos para questionar o uso tão corrente dessa noção de Amazônia. A noção de fronteira, para Nogueira (2001), é objeto de um uso acrítico, seja por intelectuais de fora da região, seja por intelectuais de dentro da própria região.São argumentos desse questionamento:a) Os diversos significados atribuídos ao termo levaram a sua vulgarização, dificultando, mais do que facilitando, a compreensão da região e de sua articulação com o território nacional.b) Trata-se de uma noção construída de fora, e que não permite a leitura do espaço pelos atores sociais internos.c) Traz embutida também a idéia de uma centralidade dominante, na qual a fronteira está sempre fora e na periferia, caracterizando uma visão etnocêntrica de espaço geográfico. d) Por isso mesmo possui um significado desagradável e pejorativo dado, em regra geral, por quem está no centro; significado este que acaba sendo transmitido a sua população.Se a noção de região de fronteira está incompleta e não consegue explicar tudo, esta é uma evidência inquestionável. Na verdade, o que se vê, em especial na Geografia, é que essa noção traz como tripé: a) o destaque a uma preocupação econômica dos processos que modelam o espaço regional, b) o impacto do modo de produção capitalista e suas formas recentes de reprodução nas organizações espaciais anteriores, e c) a necessidade de explicar o desenvolvimento desigual e combinado no interior do território nacional. Isto não nos autoriza, entretanto, a descartar o conceito como uma das possibilidades de explicar processos a que ele se propõe a compreender. A existência de uma Divisão Territorial do Trabalho no interior do território nacional nos parece revelar a constituição da Amazônia como fronteira econômica, e fronteira econômica não homogênea, diga-se de passagem; fato este também enfatizado por diversos autores que conceberam a região como fronteira, a exemplo de Becker (1990), que reconhece diferenças internas, como a Amazônia Oriental e a Amazônia Meridional. Ou, ainda, como faz Magnano (1990), que diferencia a Amazônia internamente em: 1. região de influência direta de Belém. 2. região de influência direta de Manaus. 3. região de disputa entre formas capitalistas de produção e formas alternativas de exploração do espaço produtivo, 4. região da fronteira norte, 5. região de predomínio de estruturas tradicionais em lento processo de transformação.Mesmo a discussão política inerente a esse processo parece não ser negligenciada pelos autores que se utilizam dessa noção para compreender o que seja a Amazônia, faltando, entretanto, uma maior discussão da dimensão cultural inerente a essa noção de região. Ainda que incompleta, como bem sugere Nogueira (2001), esta é, sem dúvida, uma noção de Amazônia que tem apontado elementos interessantes para se entender a particularidade que caracteriza a Amazônia enquanto espaço socialmente produzido, seja no contexto nacional, seja no contexto internacional. Acreditamos, entretanto, ser necessário avançar nesse empreendimento. É nessa preocupação que a seguir serão esboçados elementos que consideramos importantes para a compreensão da Amazônia como região. 5. À Guisa de Conclusão e de Proposição.A necessidade de superação de discursos sobre a região ou a partir da região e a necessidade de avançarmos na proposição conceitual é algo que tem nos exigido cada vez mais pensar uma concepção de Amazônia.O que considerar nessa conceituação? De início, faz-se necessário pensar na importância do conceito de região colocando o homem no centro dessa discussão para compreender a Amazônia. Nesse sentido, a particularidade regional é dada pelo papel dos homens na produção social do espaço geográfico amazônico. Ainda que pensar as realidades amazônicas a partir da noção de lugar seja de extrema importância nos dias de hoje, não se trata de suplantar o conceito de região pelo de lugar, como se a Amazônia fosse repleta somente de singularidades, ou ainda, que esse conjunto de singularidades não configurassem conjuntamente qualquer particularidade.O conceito de região serve de mediação entre processos gerais e singulares do ponto de vista histórico e econômico, como também reconhece, no espaço, uma dimensão e um recorte mediador que, no nosso entender, traz uma grande força política que pode ser apoiada na identidade regional.O papel do homem na configuração da identidade regional não pode ser distanciado de um outro elemento que nos parece de grande importância para compreender a Amazônia: a presença da natureza e a forte ligação do homem com ela. A natureza, aqui considerada, não é a natureza isolada, mas a natureza reconhecida a partir de uma identidade de vida, ou a presença da natureza ligada a várias identidades de vida e de culturas, presentes no interior da própria região. A predominância e a combinação de várias temporalidades parece ser outro elemento da particularidade regional. Assim, não se trata apenas de uma temporalidade hegemônica, a capitalista, que se impõe e que se caracteriza principalmente como processo econômico, mas inclui também tempos lentos, como aqueles das populações tradicionais. A partir dessa perspectiva, uma outra particularidade pode ser reconhecida, a particularidade das intensidades dos conflitos que se dão em decorrência do convívio dessas diversas temporalidades e que também define uma diversidade de territorialidades. Em função da pluralidade de relações com a natureza, das diversas temporalidades e espacialidades que aqui se apresentam, é uma sociedade territorializada que se caracteriza também pela pluralidade de resistências, sejam elas operárias, indígenas ou camponesas. Quem não lembra de Chico Mendes na defesa das reservas extrativistas; da índia Tuíra em Altamira resistindo à construção da Usina de Belo Monte no final da década de 80; dos negros do Trombetas que lutam pelos seus recursos naturais e pela sua cultura; dos sem terra do massacre de Eldorado; dentre muitas outras resistências que marcam a pluralidade de temporalidades e de conflitos, nos quais se coloca como centro da questão a defesa da terra, da natureza e da cultura contra temporalidades hegemônicas. Nesse sentido, a fronteira não é apenas o espaço do externo, do que se impõe, mas também do interno, do que resiste.Alia-se a esses, outro elemento que define a particularidade regional. A intensidade da expropriação dos recursos, da terra, da cultura; com uma forte, expressiva e evidente presença do Estado que, inclusive, insere outras identidades a serem reconhecidas como identidades amazônicas. É o caso do ex-norte de Goiás e também do Oeste do Maranhão. Se trabalharmos com a dimensão das representações das pessoas que vivem nesses espaços, dificilmente eles se definirão como não-amazônidas. Esse tipo de representação tem a ver com a política do Estado que os inseriu nessa particularidade regional.Outro elemento que nos ajuda a pensar a particularidade regional é o fato de a Amazônia se constituir em região de perdas, mais do que espaço de ganhos e de comando. Aqui, mais uma vez, fica clara a importância de considerar a estruturação do espaço amazônico como região de fronteira; do contrário, teríamos dificuldade de compreender as formas e intensidades da expansão capitalista no território brasileiro e mundial, que implica em movimentos e processos que vêm de fora. E, nessa concepção, a Amazônia em hipótese alguma pode ser definida como centro de comando e de origem dos processos no quais ela historicamente, e forçosamente, teve que se inserir, ainda que com manifestações de resistências.Por fim, a Amazônia, ainda que seja pontuada de tempos rápidos, e que definem espaços de altas luminosidades, como nos ensinou teoricamente Santos (1994), é, sem dúvida, o espaço, a região, onde há um predomínio do tempo lento. Aqui, este atributo não está sendo usado de maneira pejorativa, mas como um qualificativo de potencialidade política e de vida; afinal, a força dos fracos, conforme nos ensinou Santos (1994), é o seu tempo lento. É o tempo lento que nos faz reconhecer vivências, sociabilidades e, por conseguinte, identidades e, também, resistências.

CONCEPÇÕES SOBRE A REDE URBANA

Profa. Dra. Regina Araújo.


O conceito chave é o conceito de rede.
Rede é a interação do fluxo e do fixo. O fixo é o espaço geográfico, a estrutura. Os fluxos compreendem a dinâmica. Há fluxos materiais e imateriais:
a) fluxos materiais = rede de estradas, cidades, etc.
b) fluxos imateriais = comunicação, idéias ( pelo telégrafo posso mandar fluxos imateriais que não precisam da estrutura de transportes)
O conceito geográfico de rede urbana: ela só existe quando os fluxos e os fixos es-
tão interligados.
A rede urbana é um conjunto de cidades ligadas por materiais e imateriais.
Os fixos são os assentamentos.
Os fluxos são a dinâmica, que liga as necessidades.
A rede urbana é o eixo de ligação para a conexão das cidades.
Funções da rede urbana = comunicação + território.
“O Brasil é muito menos urbano do que demonstram as estatísticas oficiais. Na realidade, deve ter apenas 50% do que as estatísticas apresentam.
Äs cidade brasileiras têm densidade demográfica abaixo das mundiais( que consideram urbano apenas o que está na sede do município).
O europeu considera como cidade o que está no núcleo( tem escola, posto de saúde, é sede de comarca, etc) e que o urbano diz respeito ao conjunto de funções urbanas.
O conceito de urbano, no Brasil, é equivocado porque considera o perímetro geográfico, não as relações de fluxo.
A estatística do IBGE sobre rede urbana aponta 4.495 cidades brasileiras, mas só mais ou menos 2.000 são consideradas rede urbana.
O IBGE considera rede urbana quem tem uma agência bancária, um médico residente, uma única emissora de rádio AM, sede de comarca, entre outros.
Mas, na realidade, só fazem parte da rede urbana brasileira 2.100 cidades, isto é, as que têm funções urbanas mínimas. (fluxos materiais e fluxos imateriais).
A idéia de rede urbana não é nova. Surge desde que a cidade é cidade. Estabelece relações materiais e imateriais desde que nasce
Mesmo antes da revolução industrial, as cidades portuárias, por exemplo, eram centros de urbanização da região. A importância das cidades portos da bacia do Mediterrâneo, por ex., vem das relações comerciais e de transporte.
Alguns centros de colonização brasileira com Recife, Salvador, são centros de urbanização de uma região, proporcionando um relacionamento entre si.
A revolução industrial deu início ao processo que geraria fluxos também não materiais. Surgem os meios de comunicação usando outros caminhos, desligando do caminho da matéria. Os fluxos materiais se distanciam dos fluxos imateriais (telefone, internet, etc). A revolução industrial cria novas configurações de rede urbana, possibilitando a conexão com áreas mais distantes e com métodos mais modernos. As redes que unificam e integram as cidades brasileiras só foram conseguidas após a revolução industrial, usando a circulação rodoviária. Não existia rede urbana nacional, mas existia rede urbana regional. Por exemplo: a rede urbana da região produtora de açúcar do Nordeste era só regional.
Com o café ela passa a ser espalhada, atingindo o primeiro padrão de rede urbana brasileira.
No início era só em relação ao porto, à economia externa. Hoje, a relação é entre elas. Entre as diferentes redes internas.
Em 1950 podia falar em redes, mas era com dimensão local, isto é, Porto de Santos e interior do estado. Eram as ferrovias.
As redes urbanas brasileiras nasceram como redes locais e regionais. Hoje são nacionais.
Na segunda metade do século XX, se consolida a rede urbana brasileira. Mas, cada uma de suas partes nasceu numa época diferente. Eram épocas distintas e com características históricas também distintas. Nasciam com um objetivo, como, por exemplo,
a rede urbana de Belém. Outras nasceram como entrepostos comerciais, como Recife. Elas estabeleciam redes com centros produtores e estabeleciam relações com o mercado externo. Rio de Janeiro foi eixo básico de exportação da época mineradora.
Hoje, as cidades da Amazônia, foram criadas pela mineração, mas no começo, eram ao longo do Rio Amazonas. Eram através das hidrovias. Na década de 70, ocorre a integração da Amazônia pelas cidades mineradoras-exportadoras. Carajás, por exemplo, é um enclave porque tem pouca relação com as outras regiões brasileiras.
A rede urbana do Brasil tem a ver com um tipo de fluxo. A partir da década de 50 ela surge por causa da rede rodoviária. Os fluxos entre as cidades, além do transporte de mercadorias, têm outros objetivos.
Até 1955 havia pouca rede urbana pavimentada no Brasil e, também, não eram unificadas.
A partir de 1964 já começa haver um adensamento, principalmente em relação a Brasília e ao Nordeste.
Em 1975 surge a primeira ligação, que foi a Belém-Brasília. A partir daí as redes materiais começam a se expandir. Na década de 90 há integração dessas rodovias. Há desenvolvimento da malha rodoviária.
Mas, foi só a partir de 1960 que o IBGE começou a estudar a rede urbana do Brasil.
Em 1972 sai o primeiro mapa (retrato) da rede de influência urbana brasileira. Surge a classificação em metrópoles nacionais, metrópoles regionais, cidades importantes, etc.
A abrangência espacial da cidade depende da influência que ela exerce, o grau de sofisticação que oferece nas várias áreas.
No Brasil há duas grandes metrópoles nacionais, muitas metrópoles regionais e inúmeras cidades.
Atenção: Não há superposições. A área de influência de uma metrópole não interfere ou cobre área ou parte de área de influência de outra cidade. Não há superposição de polarização.
Metrópole já nasceu em função urbana ( não de população), mas dos bens e serviços que ela oferece ( depende das funções).
A forma de organização da rede urbana é atropelada pela globalização.
O que é a globalização? É a aceleração dos fluxos de informação. É um mundo mais veloz utilizando energias diferentes.
No Brasil, a estrutura do território ainda continua sendo formada pelas redes antigas (básicas de transportes) Mas as redes não são só materiais, são também imateriais. ( São fixo mais fluxo).
Cidades globais == São as que prestam serviços avançados para o mundo inteiro (Nova Iorque, Tóquio e Londres) Elas têm a função de ser um nó nos interesses mundiais.
Outras não são pólos tão importantes mas também exercem influência na região, em uma parte do globo.
Nos países emergentes as cidades se armam para receber investimentos estrangeiros ( A Argentina era um deles; hoje deixou de ser, porque os investimentos sumiram).
Por que tem cidades globais? Porque os fluxos e os fixos são concentrados em determinados locais que têm capacidade de difusão desses valores (ou fatores).
Os negócios são feitos (preparados) por via eletrônica, mas para “fechar” os negócios precisa ser “cara a cara”. Por isso essas cidades ainda existem como cidades globais.
A rígida hierarquia deixou de existir. Hoje há uma troca possível em todas as direções.
Quais as justificativas que os órgãos públicos estão dando para essas modificações.
O IBGE está requalificando todos os centros urbanos brasileiros.
O atual mapa do IBGE mostra o caráter descontínuo de atuação ou influência das cidades brasileiras: 1) descontínuo; 2) disposição e superposição.
Qual a novidade sobre a Hierarquia Urbana ? São Paulo e Rio de Janeiro são consideradas metrópoles globais. São as grandes cidades da economia emergente.

REESTRUTURAÇÃO URBANA E PARTILHAS TERRITORIAIS NA ÁREA DE EXPANSÃO METROPOLITANA DE BELÉM (PA)

Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior.
Departamento de Geografia/Universidade Federal do Pará.


Resumo

Na conformação do padrão de organização espacial existente na metrópole belenense, concorrem a configuração de territorialidades diversas, das quais destacam-se aquelas formalmente constituídas – ou em vias de constituição -, chamadas de territorialidades formais. Estas são expressivas principalmente no que diz respeito à institucionalização da instância municipal em determinadas localidades formadoras da atual área de expansão. A gênese dessas territorialidades analisadas no artigo, está diretamente relacionada à condição de abandono e de exclusão da população suburbana que tem incrementado os novos espaços de assentamentos residenciais na área de expansão urbana de Belém, demonstrando a sintonia dessas territorialidades com o padrão de organização do espaço metropolitano. Ademais, a identidade criada pela condição de exclusão dá origem aos movimentos definidores de tais territorialidades, sendo também capturada por interesses políticos locais que propagam, a partir da institucionalização da instância municipal ou de sua redefinição territorial, possíveis ganhos, que seriam, no discurso político, ganhos coletivos.

Palavras-chave: reestrutração urbana, partilhas territoriais, expansão metropolitana, Belém.
1. A Produção do Urbano em Belém e a (Re)Estruturação Metropolitana.
As baixadas, nas décadas de sessenta, setenta e início da década de oitenta, foram importantes focos políticos e de tensões em relação à apropriação da terra urbana em Belém. Isso acontecia porque a fronteira urbano-imobiliária era interna, e não externa aos limites da malha urbana. Nesse momento, as baixadas, até então áreas insalubres pela sua condição de alagamento, eram espaços de uso não tão intensivo, ainda que devidamente apropriadas; razão pela qual foram ocupadas por camadas sociais de baixa renda, tornando-se, em decorrência disso, verdadeiros focos de tensões e de conflitos. A intensidade desse processo, que estamos chamando de periferização interna, foi responsável também por definir um primeiro momento da metropolização de Belém, cuja característica principal foi o adensamento das áreas centrais, responsável, igualmente, por constituir uma estrutura urbana compacta, ou confinada, da metrópole belenense.
Não é essa hoje a característica principal desse mesmo espaço metropolitano. A metrópole hoje toma uma forma dispersa, e o foco político das áreas de baixadas se relativiza. Se antes essas áreas tinham o papel principal de serem espaços de reprodução das camadas sociais de menor poder aquisitivo, hoje o que se vê é uma gradativa alteração das mesmas no contexto da divisão social do espaço urbano. As baixadas continuam evidentemente, e em grande parte, a desempenhar esse papel, mas este perde importância, em termos relativos, para os novos espaços que vão aparecendo como fronteiras urbano-imobiliárias e o foco político e as tensões também parecem se deslocar para esses novos espaços de assentamentos.
As estratégias em torno das apropriações diferenciadas do espaço urbano, pressupõem, portanto, considerar essas alterações intra-urbanas. Na correlação de forças estabelecida entre os agentes, o que está em jogo parece ser o controle dessas localizações socialmente produzidas. Em determinadas circunstâncias, algumas ações não se mostram perspicazes quanto à importância dessa estratégia sócio-espacial, ou mesmo se colocam impotentes face a outras ações estrategicamente mais eficazes e melhor organizadas em redes de articulação política.
Convém salientar que essa forma dispersa da metrópole não é definida simplesmente pela ação de agentes locais. Sua gênese possui um significado mais amplo que tem a ver com o esquema de reprodução social capitalista, que pressupunha a existência da metrópole como condição à realização do padrão urbano-industrial, responsável por fazer do espaço uma força produtiva importante para o processo de reprodução do capital no território brasileiro. As ações locais são responsáveis por ratificar, redefinir ou, quem sabe, recriar e subverter esse espaço concebido.
Conforme podemos constatar para o caso belenense, mais que criar setores seletivos fora da Área Central - setores estes que definem em muito a geografia de determinadas metrópoles brasileiras -, há um reforço ao padrão de auto-segregação das classes de melhor poder aquisitivo que não prescinde das localizações existentes na Área Central da metrópole, ainda que a configuração de setores seletivos na fronteira urbano-imobiliário, a exemplo de outras áreas metropolitanas, já se faça presente.
A implicação clara desse arranjo interno da metrópole é, mais do que nunca, direcionar os assentamentos residenciais populares das áreas de baixadas para o subúrbio, processo esse que será responsável pela definição de novas territorialidades que irão se configurar no espaço metropolitano, e em especial nas suas áreas de expansão.
Num primeiro momento, foi marcante a relocalização de populações das baixadas em direção a esses vetores da expansão urbana; hoje esses novos espaços de assentamentos já se colocam mesmo como verdadeiros anteparos às migrações populacionais em direção às áreas de baixadas.
Nesse sentido, o que parece ser a tendência mais provável é o reforço do padrão já manifesto, que prioriza a Área Central. Acompanhando esse processo, a tendência é a de consolidação da estrutura metropolitana dispersa, sendo esta a dimensão espacial do processo de reprodução do capital com a reafirmação das divisões de mercados e com escalas de atuação diferenciadas.
Como se garante a manutenção dessa forma metropolitana e de seu conteúdo? As diretrizes do processo de (re)estruturação metropolitana são definidas pelos agentes hegemônicos da produção social do espaço, mas concorrem para essa conformação os demais agentes locais que estabelecem correlações de forças e redes de ação com vistas à apropriação e o controle do espaço. Isto é facilitado pela transformação do espaço social em espaço abstrato, ou seja, do espaço precipuamente valor de uso em espaço mercadoria. Para isso, a cidade é vendida em pedaços, como fragmentos de um imenso mosaico; sendo esta fragmentação uma forma de viabilizar a sua transformação em mercadoria. Numa palavra, o valor de troca se sobrepõe historicamente ao valor de uso; sendo que para usufruir de determinados atributos do lugar, necessário se faz que o mesmo se realize, antes de tudo, como valor de troca. É nesse sentido que os processos de valorização do espaço pressupõem a mercantilização dos lugares (Seabra, 1987, p.278)
Para a conformação desse padrão de estruturação metropolitana existente na metrópole belenense, concorrem, como condição e meio para a correlação de forças existente entre os diferentes agentes produtores do espaço, a configuração de territorialidades diversas, das quais destacamos aquelas formalmente constituídas – ou em vias de constituição -, chamadas aqui de territorialidades formais. Estas são expressivas principalmente no que diz respeito à institucionalização da instância municipal em determinadas localidades formadoras da atual fronteira urbano-imobiliária, conforme procuraremos analisar.
Nos últimos anos, os recortes territoriais que vêm sendo institucionalizados no espaço metropolitano de Belém parecem ser uma conseqüência da dinâmica imprimida a partir dos novos espaços de assentamentos que caracterizam a estrutura metropolitana atual. Tratam-se de movimentos de emancipação política, surgimento e redefinições internas de bairros, de regiões administrativas, redemarcação de limites entre municípios e configuração da nova Região Metropolitana de Belém. O conjunto dessa dinâmica pressupõe o processo de produção do espaço metropolitano que estamos discutindo.
Poderíamos caracterizar esse processo através de uma compreensão do que vem acontecendo nos novos espaços de assentamentos da Área de Expansão, uma vez que a delimitação das escalas de ação e controle dos agentes produtores do urbano não se dá apenas no plano informal/subjetivo. Alguns desses raios de ação, de controle e de sentimento de pertença passam a ser institucionalizados, delimitando territorialidades formalmente estabelecidas.
Para entendermos essa dimensão da reestruturação urbana, tendo em vista as territorialidades formalmente constituídas, é necessário primeiramente compreendermos o processo histórico-territorial de formação da atual Região Metropolitana de Belém.
O espaço que hoje constitui a Região Metropolitana de Belém (RMB) – formada pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Bárbara era, até o início do século, território pertencente ao Município de Belém. A extensão deste Município estendia-se até o atual Município de Capanema; correspondendo, até 1920, a uma área de 9.366 Km2. Após a revolução de 1930, vários recortes territoriais passaram a acontecer. Inicialmente houve o desmembramento para a formação dos Municípios de Castanhal e Santa Isabel. Em 1943, houve uma nova partilha territorial para a criação dos atuais Municípios de Ananindeua e Barcarena, quando então sua extensão era de 3.822 Km2. Ananindeua, já como Município, também foi desmembrado em 1961, cedendo grande parte de sua área para o atual Município de Benevides (SEICOM, 1995, p. 30).
Na década de noventa é criado o Município de Santa Bárbara do Pará (ano de 1991), desmembrado de Benevides, e, em 1994, é criado, a partir também do Município de Benevides, o Município de Marituba. O quadro a seguir demonstra melhor essa dinâmica de recortes territoriais ocorridos, especificamente no espaço que constitui a atual Região Metropolitana de Belém.
2. Considerações Finais
Por fim, cabe mencionar o uso político do território e sua sintonia com o padrão metropolitano disperso em relação às territorialidades formais. Como vimos, a gênese dos movimentos de emancipação analisados está diretamente relacionada à idéia de abandono e de exclusão da população suburbana que tem incrementado esses novos espaços de assentamentos residenciais na Área de Expansão. A identidade criada por essa condição de abandono e exclusão, que dá origem aos movimentos, é também capturada por interesses políticos locais que propagam, a partir da institucionalização da instância municipal ou de sua redefinição, possíveis ganhos, que seriam, no discurso político, ganhos coletivos. É um tipo de prática que conduz ações ratificadoras da existência da metrópole dispersa, no momento em que dependem da existência e das condições infra-estruturais dos assentamentos residenciais que conformam a desconcentração.
Nesse processo, desloca-se a questão principal, qual seja a da gestão democrática do espaço urbano, para um nível de discussão em que está em jogo a definição de territorialidades formais que possam garantir, em primeiro plano, a realização de interesses particulares. Prioriza-se, assim, o simples uso político do território e a conseqüente alienação do indivíduo com relação ao lugar e a sua inserção no processo de metropolização, em detrimento da consciência territorial; esta entendida como consciência em relação ao lugar e à sociabilidade do indivíduo, de modo a permitir uma percepção mais nítida possível a respeito das vivências individuais e coletivas (Mesquita, 1995, p. 89) no contexto metropolitano.
Com isso, as territorialidades deixam de ser simples aderências à estrutura metropolitana dispersa, para tornarem-se principalmente condições essenciais a sua existência, sejam elas formalmente constituídas ou não.
O que parece estar no centro dessa questão - que é o processo de (re)estruturação da metrópole - é principalmente a questão da expropriação. (Re)estruturação significa estruturar de novo, levando-nos a considerar a instabilidade, as alterações, enfim, a dinâmica sócio-espacial. Essa dinâmica não deve ser vista sem contradições, sem tensões e descompassos, pois são estes elementos que imprimem o movimento em suas múltiplas temporalidades (Lencioni, 1997).
É um processo, portanto, que sugere a compreensão da relação todo-parte como unidade dialética, que concebe a existência de uma totalidade aberta e em movimento, na qual as partes não são meras composições do todo, mas sim totalidades parciais, igualmente abertas, que se relacionam entre si (Lefebvre, 1955). É nesse sentido que as alterações verificadas no interior do espaço metropolitano acompanham o movimento da metrópole que internamente redefine espacialidades e territorialidades.
Dessa maneira, a estrutura metropolitana que se consolida pressupõe a primazia das áreas centrais no processo de apropriação do espaço urbano. Para a concentração do capital, e nesse caso estamos falando principalmente do capital imobiliário, a existência da forma dispersa e da metrópole desconcentrada é uma condição e um meio necessário a concretização de determinados interesses de apropriação do espaço.
Para esse tipo de capital, a localização é um fator decisivo para a fixação dos preços e condições diferenciadas de comercialização da moradia. No caso belenense, a apropriação das áreas centrais, no processo de produção de imóveis para a demanda solvável, pressupõe um “alisamento” ou “arrasamento” dos espaços da Primeira Légua Patrimonial, como é chamada a área central do espaço metropolitano, inclusive das áreas de baixadas aí localizadas; áreas estas conhecidas por serem espaços de reprodução de camadas de baixa renda. Pressupõe, também, a definição de uma área de expansão, que tem possibilitado a dispersão metropolitana e o rearranjo interno do espaço, tendo em vista a apropriação diferenciada por agentes hierarquicamente diferentes. Neste plano, a dispersão e a concentração formam também um par dialético para a realização dos processo sócio-espaciais no âmbito metropolitano. É na busca dessa compreensão que as territorialidades formalmente constituídas na Área de Expansão metropolitana ganham importância, no sentido de contribuir para um determinado padrão disperso de configuração do espaço metropolitano.

Amazônia Redividida

Elementos para a compreensão dos processos em curso de redivisão territorial do Estado do Pará
Prof. Dr. Gilberto de Miranda Rocha
NUMA/UFPa

Introdução

Uma viagem ao passado da Amazônia demonstra o quanto a redivisão territorial tem sido uma questão que se renova e muitas vezes se amplia, em diferentes momentos da vida política brasileira e com diferentes significados e justificativas. Algumas dessas justificativas fazem parte dos argumentos de praticamente todos os movimentos emancipacionistas de âmbito regional tais como: a grande dimensão territorial, o que inviabiliza a administração e prestação adequada dos serviços públicos, a desigual distribuição e alocação de recursos, o controle e a defesa do território e das fronteiras e, portanto, a necessidade de ampliação da presença do Estado, defesa nacional, ampliação da representatividade política regional, a estadualização como alavanca para o desenvolvimento regional, etc....E, outras recentemente incorporadas como a necessidade de controle do narcotráfico, as guerrilhas fronteiriças.
No presente trabalho procuramos refletir sobre a redivisão territorial da Amazônia, e particularmente sobre as propostas de divisão do Estado do Pará, focalizando dois aspectos subjacentes a esse processo de partilha territorial: a dimensão econômica da redivisão, i. e. o que estimula essencialmente em termos dos recursos existentes nos territórios e a dimensão simbólico – cultural através da qual se fundamenta a apropriação coletiva do espaço. Antes porém, refletimos sobre o reordenamento espacial do território, sobre as mudanças nas formas de apropriação e uso dos territórios induzidas pelas políticas públicas federais para a região nas ultimas três décadas. Ainda visando criar bases para a melhor compreensão das propostas, procuramos focalizar as mudanças sócio – culturais – emergência de novas territorialidades - e político-institucionais – alteração nas formas e mecanismos de gestão - desfechadas no Estado nas últimas décadas. Além desses aspectos, o presente trabalho pretende contribuir para aprofundar a reflexão sobre alternativas a divisão territorial assim como as atuais formas de gestão territorial: uma terceira via ?
1.O ParÁ sob intervenção : a federalização e a reestruturação espacial do território estadual
1.1. A estrutura espacial do território estadual ate a década de 1960
A compreensão dos processos de emancipação político – territorial – criação de novos estados – a partir da redivisão do Pará implica o resgate dos processos recentes de reordenamento espacial do território estadual. Nas ultimas três décadas, os processos de intervenção federal induziram a mudança da estrutura espacial herdada e construída a partir do período colonial.
Até a década de 60 a dinâmica espacial regional espelhava o funcionamento da economia baseada na exploração extrativista e alicerçada no sistema de aviamento e tendo como suporte a existência do produto, uma rede de núcleos e a circulação fluvial. A bacia hidrográfica desempenhava papel fundamental na estruturação da vida econômica como eixo de penetração, circulação e povoamento.
Entre o final do século XIX e primeira metade do século XX, o boom da borracha, e as sucessivas fases de exploração extrativa (caucho, castanha, borracha), a economia extrativista estimulou a produção de uma estrutura espacial que articulava os locais de extração / produção no interior do território com os centros exportadores de Belém através de uma rede de localizações, pequenos núcleos urbanos de povoamento cuja função primordial era, além de servir de moradia para a força de trabalho, pontos de comércio e concentração da produção na bacia hidrográfica, extrair o excedente econômico gerado(Correa,1992). Essa estruturação espacial na Amazônia se iniciou com a fundação de Belém, cidade estratégica e excentricamente localizada em relação a hinterlândia, a cidade primaz. Como ponto de abertura e penetração do território, constituía a sede das principais funções políticas e econômicas, do comercio atacadista e exportador, possibilitando a participação da região na divisão internacional do trabalho.
No Estado do Pará, esse sistema espacial condicionou o processo de produção, circulação da borracha (1890-1910), da castanha do para(1926-1964), de povoamento e de estruturação das principais cidades(Belém, Santarém e Marabá), concentrando a população na calha dos principais rios – Amazonas, Tocantins, Xingu e Tapajós. No âmbito desse sistema espacial, o controle sobre o território, sobre a produção, circulação, sobre a forca de trabalho envolvida assim como o excedente econômico gerado,era alicerçado em uma estrutura de poder oligárquico (Emmi,1988).
1.2. O reordenamento espacial do território estadual
A segunda metade da década de 60, representa um marco do ponto de vista do reordenamento político – institucional assim como das transformações espaciais e territoriais na Amazônia oriental. No âmbito das mudanças de ordem política e institucional do Estado brasileiro pós – golpe militar de 1964, são lançadas as primeiras medidas de política com o objetivo de assegurar a ação federal na região de forma efetiva. A “operação amazônica”, em 1968, redefiniu o arcabouço institucional regional ao criar a Sudam e o Incra. Posteriormente, em 1971, através do Dec. Lei n. 1164 / 71, são federalizados cerca de 66% das terras do território do Estado do Pará.
No período entre 1971 a 1987 o processo de distribuição e de regularização da apropriação das terras ocorreu sob a égide do Incra. Ao federalizar o território, o governo federal alijou as oligarquias regionais do poder de distribuição de terras, dado que retirou do controle estadual a regularização das terras, suprimiu a existência de terras comunais e devolutas para a instauração da propriedade privada e negou as posses imemoriais dos grupos indígenas, caboclos e ribeirinhos e ainda obstruiu o processo de ocupação não – controlada de terras devolutas. A ocupação seletiva das terras constituiu no principal mecanismo de gerencia territorial do Incra. Somente 26% do território permaneceu sob o controle do governo estadual.
No mesmo período, através de políticas de integração nacional e planejamento do desenvolvimento regional, (Pin, Proterra, Polamazonia e Programa Grande Carajás) abriu a região ao integrá-la através de eixos rodoviários, ao criar mecanismos institucionais de incentivo a apropriação privada das terras, a diversificação das atividades econômicas – agropecuária, mineração e industrialização – e ao desestimular a economia extrativista que assegurava o funcionamento da economia regional.
O estimulo a migração através de políticas de atração populacional constituiu mecanismo em vistas a formação de um mercado de trabalho regional. Somente no Estado do Para, ao longo da rodovia transamazônica, instituiu três projetos integrados de colonização através de uma concepção urbanística de base rural.
Em vinte anos de intensas transformações, as políticas públicas reordenaram espacialmente o território estadual. Em 1970, existiam cerca de 83 municípios no Estado do Para. Como parte desse processo de reordenamento, a ocupação seletiva da terra estimulou a urbanização do território. Novos núcleos urbanos surgiram, seja como expressão planejada dos grandes projetos, as company towns, as agrovilas, agrópoles e rurópolis, seja como fruto do povoamento espontâneo e das contradições das políticas de desenvolvimento implementadas. Até 1996, havia sido criado cerca de 60 novos municípios, totalizando hoje 143 unidades político – administrativas.
O que é relevante nesse processo de reordenamento espacial do território estadual é o fato de que as novas formas de apropriação e de uso do território e de dominação política deram ao Estado do Pará uma nova configuração. A magnitude e a intensidade da intervenção federal transformou a estrutura e a dinâmica espacial estadual, posto que alterou a base material – geográfica anterior e afetou os circuitos de produção e acumulação tradicionais, desestruturando os atores sociais pré-existentes e seu poder político. O território estadual se reestruturou na medida em foram introduzidas novas atividades, novos padrões demográficos, o surgimento de novas cidades, transformando o padrão de hierarquização do sistema espacial e da rede urbana regional.
Em outro plano, as formas capitalistas de divisão técnica do trabalho que se implantaram, junto com a chegada dos fluxos migratórios de caráter heterogêneo desde o ponto de vista de sua composição demográfica, social e econômica, trouxeram como conseqüência à reestruturação do sistema de classes sociais e a complexificação sociedade civil. O especifico a reter é que, as modificações econômicas e sócio – políticas desencadeadas, levaram ao declínio os arranjos espaciais e as formas de dominação política construídas historicamente, demandando a construção de novos de novos pactos e o estabelecimento de novos laços entre os atores partícipes da nova realidade em formação ou mesmo demandar a construção de novas identidades territoriais. No sentido político do termo, essas mudanças, no atual contexto histórico, pode se associar às novas necessidades de remodelagem das estruturas político – administrativas. A complexificação das estruturas de classe sociais, os conflitos pelo poder, os movimentos sociais podem demandar novas figuras político – institucionais que produziriam novas normas, ordens e legitimações, para dar organicidade à nova estrutura espacial e territorial construída através do processo intervencionista. a transformação político – institucional.
2.O ParÁ dividido
2.1. O contexto histórico de emergência dos movimentos emancipacionistas
As propostas de criação de novos estados – Tapajós e Carajás - a partir da redivisão do território paraense, surgiram em um contexto histórico marcado pelo processo de redemocratização da sociedade brasileira, um contexto, a um só tempo, de crise e reestruturação das relações entre o estado e a sociedade. No âmbito nacional, na década de 80, de um lado, ocorre o aprofundamento da crise fiscal do Estado que vem a contribuir para a obsolescência econômica do Estado Nacional, expressa na ineficácia do governo federal no controle inflacionário e em tornar efetiva a sua ação planejadora . Ocorre uma retração significativa das políticas publicas regionais. Por outro lado, o país vivenciava, a falência do regime militar cuja expressão é perda progressiva de legitimidade frente a sociedade brasileira.
Na Amazônia, a intervenção federal que durante o regime militar, promoveu mudanças substanciais na base econômica e nas formas de organização sócio – política regional enfraquece. Intensos conflitos em torno do acesso a terra, o acirramento dos movimentos sociais frente a seletividade social, a concentração espacial e setorial dos investimentos e o depauperamento das obras de infra-estrutura e dos serviços públicos são expressões da falência da gestão estatal – nacional no espaço regional. Frente a instabilidade, o Estado procurou redefinir suas formas de ação regional.
A federalização do território, as poucos, é substituída por um processo de ação compartilhada entre os níveis de governo, para a qual se buscou o revigoramento do poder local e regional. O fortalecimento dos municípios – pólos, centro sub-regionais e a municipalização do território constituíram medidas de política que visaram, entre outros aspectos, a implementação de uma nova ordem política e institucional. Segundo Rocha (1999), o município constituiu instrumento tanto para o restabelecimento dos sistemas hegemônicos locais, redefinindo assim as alianças entre os atores políticos no âmbito do novo cenário econômico, político e territorial do estado do Pará quanto uma tentativa de restabelecer o controle e a regulação social. Um momento ímpar na busca da re-legitimação do Estado frente a sociedade regional.
Ressalta-se que, conforme Rocha (1999:76) “é em meio a esse revigoramento do poder local e regional e de mudanças na base econômica e política local que emerge os movimentos separatistas dos estado do Carajás e do Tapajós ”. O movimento constituinte de 1986/87 vem igualmente constituir o mecanismo institucional através do qual buscar-se-á a autonomia política.
2.2. A dimensão econômica do(s) território(s)
Os movimentos emancipacionista representam a expressão política e territorial do reordenamento espacial, econômico e sócio – político do território estadual. As mudanças processadas ensejaram o reordenamento dos sistemas hegemônicos locais e regionais com implicações no realinhamento das alianças entre os atores presentes na região. Trata-se de movimentos que almejam a apropriação política do território, como meio para tingir objetivos e interesses subjacentes as suas praticas espaciais.
“representam em outro patamar conflitos pelos meios, pela implantação de recursos de exploração e pela apropriação dos benefícios e dos excedentes econômicos ali gerados, assim como apontam para a necessidade de estabelecimentos de novas formas (e reafirmação de antigas) de dominação político – social através da difusão de novos valores, símbolos e de afirmação de novas territorialidades. Trata-se de um processo de consolidação de territórios legitimadores das novas redes econômicas e / ou dos novos (e, em certas situações, também os velhos) interesses políticos”(Rocha,1999:229).
e, ainda enfatiza o autor,
“igualmente, apontam para a recomposição das relações de forcas emergentes na área, em que a divisão do território seria um meio de legitimação / legalização da apropriação e da definição de domínios territoriais por essas mesmas forças dominantes”(Rocha,1999:230).
Em que pese as dimensões culturais e sócio - espaciais – expressões das mudanças processadas na estrutura espacial do território estadual - subjacentes as propostas, a emancipação, a rigor, vem a se constituir um pretexto, tanto como forma de captação de recursos – instrumento de barganha política da(s) elite(s) regional(is) (o mito da necessidade) - quanto a possibilidade de construção de canais legais de legitimidade da apropriação dos recursos territoriais por essas mesmas elites.
Tab. N. 01. Para, Tapajós e Carajás: Os recursos e os Territorios
Os recursos e os Territórios
Para
Tapajós
Carajás
Área territorial
249.000 km2
708.868 km2
289.799 km2
População
4.000.000
958.860
1.100.000
Áreas de uso restrito (unidades de conservação e terras indígenas)

13

22

14
Icms (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços)
79,49 %
7,0 %
13,51 %
Fpe (Fundo de participação do estado)
491.597.016[2]
115.365.280
137.629.573
Recursos
Industria, serviços e agropecuária
Minérios e agropecuária
Minérios e agropecuária
Fonte: Governo do Estado do Pará: Indicadores Sócioeconômicos, 2000.
2.3.O uso político do território: a produção política do consenso em torno da emancipação
A territorialização envolve sempre, ao mesmo tempo, mas em diferentes graus de correspondência e intensidade, uma dimensão simbólico – cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais como forma de “controle” simbólico sobre o espaço onde vivem, e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: o domínio do espaço pela definição de limites e fronteiras visando a disciplinarização dos indivíduos e ao uso / controle dos recursos ali presentes[3]. No âmbito do processo político de projeção territorial, essas duas dimensões se entrecruzam dando a cada uma das propostas uma singularidade que se substantiva na diferença contida no território, na projeção sobre o espaço “de estruturas especificas de um grupo humano, que inclui a maneira de repartição, de gestão e de ordenamento desse espaço”(Brunet et al,1992:436 apud Claval,1999:11) e, ao mesmo tempo, na cristalização de representações coletivas, dos símbolos que se encarnam em lugares nos quais estão inscritas as existências humanas (Claval, 1999:11).
2.3.1.O poder disciplinar: o controle, a defesa e o estímulo a ocupação efetiva do território.
A divisão territorial da Amazônia, ao longo do presente século, tem sido uma questão recorrente não somente no marco da discussão e de propostas como igualmente na efetivação da divisão. Pode-se mesmo dizer que a atual configuração político administrativa é recente e fora moldada a partir de 1911 com a questão acreana. Naquela ocasião a apropriação do excedente econômico gerado pela economia extrativa da borracha mobilizou parlamentares e as elites tanto do Pará como do Amazonas. A federalização do território foi a solução à época encontrada. Na década de 40, novamente partilhar a amazônia foi objeto de ampla discussão no âmbito da organização do Estado brasileiro e da integração e de manutenção da integridade do território nacional. Os anseios geopolíticos de controle territorial e das fronteiras elevariam a divisão territorial como medida visando estimular a ocupação e ao povoamento regional. A criação de postos de vanguarda nas fronteiras, ampliar a presença do estado federal, de federalizar parte dos territórios estaduais justificava-se.
Getúlio Vargas estimulado pelo Conselho de Seguraça Nacional, através do decreto-lei n. 5.812, de 13 de setembro de 1943 cria os Territórios Federais: Guaporé (Rondônia), Amapá e Rio Branco (Roraima) na Amazônia. A preocupação com a imensidão territorial e o vazio demográfico amazônico sempre foi ponto de convergência entre ideólogos e geopolíticos e os militares. A divisão territorial tem sido assim um meio de indução da civilidade, da apropriação real e efetiva do território pela nação-estado, parte integrante da construção territorial do Estado Nacional. Como mecanismo jurídico e político, a divisão do território era (e é) parte integrante da organização geográfica do Estado, do controle, da administração e da gestão territorial.
Esses mesmos princípios recentemente foram ressucitados, revividos em parte pelas recentes propostas. A leva de movimentos emancipacionistas nos quatro cantos do Brasil durante o processo constituinte de 1986/87, (somente no Pará foram dois: estado do Carajás e estado do Tapajós) induziu a criação, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, de uma Comissão de Estudos Territoriais(1989). O Relatório Final foi apresentado em janeiro de 1990. Foi recomendada a redivisão da Amazônia com a criação dos Territórios Federais do Rio Negro, Território Federal do Alto Solimões (dividindo o Amazonas), o Território Federal do Araguaia (dividindo o Mato Grosso) e a criação do Estado do Tapajós (dividindo o Estado do Pará).
2.3.2.a dimensão simbólico – cultural e a construção da identidade territorial
Os lugares, as regiões são “freqüentemente fontes de identidade coletiva e também de atividades econômicas”(Brunet et al.,1992:232), fontes de recursos, de possibilidades de reprodução biológica e sócio – cultural. Como suporte material e base simbólica, o território constitui instrumento indispensável a construção das identidades coletivas.
Dessa forma, freqüentemente, ao nos referirmos ao Oeste do Para e Baixo amazonas(Tapajós) e ao Sul e Sudeste do Para(Carajás), nos referimos a espaços diferenciados, singulares no âmbito do território estadual. As propostas de criação de novos estados são projeções territoriais, são manifestações coletivas – coordenadas ou não - que acenam distintamente para a apropriação política do seu espaço de vivencia e produção – apropriação e uso dos recursos contidos. O espaço e a cultura participam desse processo dado que representam o suporte material (legado ou construído) e a base simbólica sobre os quais são forjadas e construídas as identidades territoriais através da difusão de uma ideologia territorial.
A idéia de tradição e de cultura local e regional (presente no baixo amazonas, no tapajós) ou de pioneirismo dos desbravadores (presente no sul e sudeste do Para) contribui para elaborar a re – construção peculiar da historia local, conferindo-lhe unidade imaginaria. A idéia complementar de região, presente no ambiente construído ou não – nos lugares memoráveis, a terra natal, o espaço de vida e produção – “terra conquistada com esforço e trabalho, canaã”, “região em que todos tem um lugar ao sol” (sul e sudeste do Para) produz a noção de unidade territorial. A eficácia simbólica dessas idéias mobilizam a sociedade regional em torno do projeto emancipacionista. O uso político do território passa a ser, indiscutivelmente um instrumento de grande eficácia para atingir a unidade e o consenso em torno da região.
2.3.3.da alocação de recursos, da produção do território e do estimulo ao desenvolvimento regional
A alocação de recursos de forma mais eqüitativa tem sido a outra fonte de reivindicação para emancipação de territórios, em Estados ou mesmo em Territórios. No caso do Tapajós se releva a ausência de uma política específica para a região oeste do estado do Pará, exemplificada pela carência de infraestrutura. Enfatiza igualmente a fragilidade administrativa e a retirada de recursos do Oeste do Pará sem uma contrapartida real para a região. E, conclui, referindo-se às vantagens de representatividade política que a criação de novas unidades político-administrativas traria para o desenvolvimento regional e a ampliação da consciência política.
3. Pará, capital Belo Monte : a proposta de transferência da capital como instrumento geopolítico para conter a redivisão !
Nos anos oitenta, época de eclosão dos movimentos, conforme Rocha(1999), a partilha territorial representava uma forma peculiar de captação de recursos frente ao depauperamento das infraestruturas e do descalabro da oferta dos serviços públicos.
“A projeção e a tentativa de apropriação política do novo território representou, grande instrumento de barganha que se traduziu na definição de investimentos de infraestrutura por parte do governo estadual, para neutralizar o movimento e promover a efetiva integração e manutenção da unidade política do território paraense” (Rocha,1999:77)
O ressurgir das propostas de criação dos estados do Carajás e Tapajós, estimulou o governo do estado a busca de alternativas à redivisão territorial. A Fundação Getúlio Vargas foi contratada na forma de consultoria para a realização de diagnóstico sobre a estrutura espacial e econômica e necessidades de recomposição. No diagnóstico, Belém se assevera como um problema para o comando da estrutura econômica e espacial do território estadual. A excessiva concentração das atividades em no entorno de Belém e a baixa integração estadual apresentava-se, de fato, como estímulo a desagregação territorial.
A partir de clássicos preceitos geopolíticos o governador Almir Gabriel propõe a transferência da capital do Estado do Pará para a localidade de Belo Monte (parte do município de Anapú, parte do município de Vitória do Xingu, na volta grande do Xingu. Ao centralizar geograficamente o poder político do Estado do Pará, a exemplo do Brasil ao construir Brasília, visava interiorizar a economia estadual, reordenando a distribuição das atividades econômicas e produtivas, redirecionando os fluxos e parte dos aportes demográficos concentrados em Belém, enfim estimulando como no passado recente a reestruturação espacial do território. A crença do governador residia no fato de que reordenando novamente a espacialidade estadual poderia conter o processo de redivisão territorial.
4. Considerações Finais : Para além da redivisão, por um projeto político regional !
As propostas de redivisão do Estado do Pará expressam processos de reconfiguração espacial e de rearranjo das relações de poder no âmbito estadual. Não são processos artificiais, são produtos legítimos de territorialidades emergêntes e que reivindicam a apropriação política do território, sobre os quais têm domínio. No entanto, é lícito considerar o fato de que a existência da diferença e da singularidade não necessariamente pressupõe a separação. Ao contrário do que ao longo desse século norteou a construção dos Estado-Nação, a homogeneidade linguística e étnica – cultural, o Estado pós – moderno deve operar pela diferença, pelo respeito a diversidade cultural e étnica existente. Nesse contexto, tanto as propostas de divisão como a transferência da capital do Estado do Pará, formulada pelo Governo do Pará, estão na contramão de uma gestão territorial que der conta da complexidade que hoje é o Pará. A sua unidade política e territorial somente poderá ser alcançada frente a uma ampla redefinição conceitual da identidade paraense, fundada na diversidade e não na homogeneidade.
Ademais, é importante ainda frisar que para tanto, refazer o processo de gestão territorial é urgente e indispensável. Um novo processo que seja tomado como princípio fundamental o poder popular, a participação da sociedade civil nos processos de decisão sobre o futuro de cada região do Estado do Pará. Uma espécie de federalismo à escala estadual. O governo do território não se resumiria às instituições locais (ainda que estas sejam fundamentais), mas a todas as formas de organização em níveis escalares distintos e da sociedade civil que, de forma negociada e interativa, participariam e competiriam na resolução dos problemas que envolvem determinado âmbito local e sub - regional. A tomada de decisão tende a ser concebida como resultado de um processo de interação entre atores individuais e/ou coletivos, atores esses que dispõem de representações diferenciadas no contexto da negociação. Isto quer dizer que tanto em nível interno a um determinado território como no seu relacionamento com outros níveis escalares de poder, a participação compartilhada passa a ser o norteador nas novas formas de governo do território. Os territórios organizados, assim, passam a exercer um papel completamente novo atualmente (Boisier,1996).
As possibilidades de desenvolvimento local e regional estariam ligadas à capacidade de organização que cada âmbito espacial tenha de acumular poder político, algo que se obtêm mediante o consenso político, o pacto social, a cultura de cooperação e a capacidade de criar, coletivamente, um projeto de desenvolvimento. A criação de poder político e de busca do consenso e pacto social local e regional torna-se relevante para a construção de um projeto político regional, instrumento indispensável na formulação de estratégias em vistas o alcance do desenvolvimento local e regional.

À sombra do grande projeto

Walter Pinto
Fotos: João Márcio (Carajás) e Walter Pinto(geógrafo)
O pouso de emergência de um helicóptero devido a problemas mecânicos, em 1967, na Serra dos Carajás, sudeste do Pará, possibilitou ao geólogo Breno Augusto dos Santos descobrir uma das maiores províncias minerais do mundo. A história da região iria mudar radicalmente, principalmente com a entrada em cena da Companhia Vale do Rio Doce, a partir de 1969, inicialmente associada à United States Steel, quando formou a Amazônia Mineração e depois de 1977, quando passou a ter o controle da exploração na região.
As transformações verificadas na região foram alvo de estudos realizados pelo professor da UFPA João Márcio Palheta da Silva, doutor em geografia pela Faculdade de Ciência e Tecnologia da Unesp Presidente Prudente. Ainda na graduação, ele pesquisou a área de influência do projeto Carajás. Durante o mestrado, fez estudos comparativos da viabilidade econômico-financeira dos municípios de Parauapebas e Curionópolis. No doutorado, concluído no primeiro semestre de 2004, concentrou seus estudos sobre a presença, direta e indireta, da CVRD no processo de fragmentação territorial de Marabá, cujo desmembramento deu origem a novos municípios.
Palheta explica que uma das propostas da tese de doutorado era observar se as emancipações viabilizaram efetivamente o desenvolvimento dos novos municípios. "Procurei observar se os discursos pelos quais eles foram criados fundamentaram, de fato, o crescimento deles. E também mostrar a relação entre eles e Marabá".
Quando Breno Augusto dos Santos descobriu acidentalmente a província mineral de Serra dos Carajás, o município de Marabá, criado em 1913, possuía um vasto território, no qual a economia se baseava no extrativismo vegetal, primeiro com o caucho, árvore que extraia a matéria-prima da borracha, e depois com a castanha do pará. A CVRD começou a se instalar em seu território em 1980, mas somente em 1985, deu início à exploração de ferro, exportado por via férrea através do porto de Itaqui, no Maranhão.
Ao construir um núcleo urbano para operários e uma cidade para os funcionários de maior qualificação, no alto da Serra dos Carajás, em 1982, a companhia criou as bases do futuro município de Parauapebas, a 166 quilômetros de Marabá, efetivada em 1988. Como em todo grande projeto, milhares de pessoas foram atraídas para o novo núcleo. "De repente, uma cidade planejada para cinco mil habitantes passou a ter 14 mil. O núcleo planejado foi cercado por uma ocupação desordenada. A explosão demográfica não era esperada pela companhia", relata Palheta.
No mesmo ano ocorreria outro desmembramento no território de Marabá, para a criação do município de Curionópolis, em função do garimpo de Serra Pelada. Os dois novos municípios, no entanto, experimentaram formas antagônicas de desenvolvimento. Enquanto o crescimento populacional de Parauapebas coincidiu com o desenvolvimento dos projetos da Vale, que passou a operacionalizá-los com mais eficiência, Curionópolis mergulhou numa crise, em função da decadência de Serra Pelada. O município perdeu parte da sua população, verbas do Fundo de Participação dos Municípios e recursos do garimpo. Condiciona, hoje, todo o seu futuro ao desenvolvimento de projetos pela Vale do Rio Doce em seu subsolo. Mas as transformações na economia internacional, ao que parece, estão contra os anseios do município: após a privatização, em 1997, a Vale do Rio Doce reavaliou seu plano e adiou o projeto Serra Leste, de exploração de cobre em Curionópolis.
Discursos - O pesquisador da UFPA identificou, em sua tese, uma parceria entre classe política e sociedade nas reivindicações pela emancipação de Parauapebas e Curionópolis. "Os discursos foram plantados em cima do desenvolvimento ligado à atividade mineral. Mesmo em relação a Curionópolis, já em decadência e com perda de população, eles traziam embutida a esperança de que a Vale viesse a desenvolver projetos de mineração em sua área", relata Palheta. Os mesmos argumentos foram utilizados numa segunda etapa do processo de emancipação, que culminou com a criação dos municípios de Água Azul do Norte, em 1991, Canaã dos Carajás, em 1993, ambos originados de Parauapebas, e Eldorado do Carajás, em 1991, desmembrado de Curionópolis.
"No trabalho de levantamento de dados", conta Márcio Palheta, "observei que o discurso do desenvolvimento pautado na industrialização dos recursos minerais não cabe para todos os municípios. Água Azul e Eldorado, por exemplo, possuem economias que giram em torno da madeira e, principalmente, da specuária. Há tendência, inclusive, de entrada nestas regiões da indústria de laticínios e frigoríficos".
Por outro lado, a Vale do Rio Doce colocou em funcionamento, em Canaã dos Carajás, na Serra do Sossego, a primeira parte de um conjunto de oito projetos que pode tornar o Brasil auto-suficiente na exportação de cobre. A pequena Canaã, que tinha até então 10 mil habitantes, passou a ter cerca de 50 mil. O pesquisador da UFPA esteve lá em outubro do ano passado quando testemunhou a agitação da cidade. "Canaã havia se tornado um verdadeiro canteiro de obras, com a Vale do Rio Doce empenhada em dotar o município de infra-estrutura básica".
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Contradições do discurso desenvolvimentista
De modo geral, assinala o geógrafo Márcio Palheta, o discurso de desenvolvimento pensado para a região de Carajás não alcançou o seu efeito multiplicador, nem trouxe com ele outras empresas e atividades agregadas capazes de gerar mais emprego e melhores condições de vida para a população dos municípios. Apenas Marabá e Parauapebas alcançaram níveis diferenciados na região.
"Marabá nunca dependeu da Vale do Rio Doce e, sim, de todo o seu processo histórico de desenvolvimento. Parauapebas, porém, condiciona seu desenvolvimento às atividades da Companhia em seu território. Em termos de transferência de recursos, se a Vale vai mal, Parauapebas vai mal também. Trata-se de um município rico, com bolsões de miséria dominando a paisagem local", explica.
Em 1997, Parauapebas recebeu R$ 11 milhões só da exploração do ferro. Os royalties pagos pela companhia poderiam amenizar os sérios problemas do município, como, por exemplo, os da área da Saúde. No entanto, quem precisa fazer uma operação cirúrgica mais delicada, tem que se deslocar à cidade de Teresina, capital do Piauí. O paradoxo da situação - a população de um município rico ser obrigada a procurar assistência médica num dos Estados mais pobres da federação - é um dos parâmetros que a sociedade organizada utiliza para questionar a política administrativa em Parauapebas.
"É inegável que a Vale do Rio Doce trouxe, para os cofres do Estado e dos municípios onde ela atua, uma certa participação. Só que muitos desses municípios atrelam o seu projeto de desenvolvimento à CVRD de forma errônea. Os projetos da Vale não trarão desenvolvimento, se não tiverem associado à agricultura e a outros projetos que, na maioria das vezes, os municípios não possuem", afirma o pesquisador.
Segundo Palheta, na região de Carajás "não se vê os gestores locais pensando no futuro de seus municípios. A coisa é mais imediatista. Quem faz a diferença na área é Marabá, um pólo importante que possui um poder local com uma certa visão do todo e da sua importância para este todo. Os demais locais não possuem a mesma visão". Ele enfatiza suas palavras com o exemplo dado por um secretário de desenvolvimento de Parauapebas, para quem o município não tem que atrair empresa alguma. Esse papel caberia tão somente à Vale.
"Essa situação tende a gerar conflitos em considerar que o poder da companhia suplantou o poder da estrutura administrativa dos municípios. Reforça esse entendimento uma antiga prática adotada por alguns prefeitos de solicitar à Vale a indicação de funcionários para o exercício de cargos importantes, como o de secretário municipal", revela Palheta. Na mesma linha, está a prática desenvolvida, num passado recente, por alguns prefeitos da região que recorriam à Csompanhia no sentido de que planejasse o município para eles.
Para o pesquisador, essas são algumas das contradições que vão de encontro ao discurso de desenvolvimento proposto para a região. "É preciso pensar numa outra lógica de desenvolvimento, no qual a Vale do Rio Doce se insira com suas coligadas e contratadas, de uma forma que o Estado também seja um agente participativo e não apenas um agente legitimador da ação da companhia", conclui.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

DOSSIÊ AMAZÔNIA BRASILEIRA

Situações da Amazônia no Brasil e no continente


Hervé Théry


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RESUMO
ESTE ARTIGO analisa inicialmente o peso real da Amazônia no Brasil, em termos econômicos e humanos. Em seguida, avalia as políticas públicas na Amazônia, cuja linha diretriz parece ser de mantê-la em um papel de fronteira de expansão. Finalmente, resitua a região na América do Sul, que passa subitamente de periferia a centro do continente.
Palavras-chave: Amazônia, Geopolítica, Políticas Públicas, Estratégias.
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ABSTRACT
THE ARTICLE analyzes first the actual weight of Amazonia in Brazil, in economic and human terms. Then, it evaluates the public policies in Amazonia, whose main line seems to be to maintain it as an expansion frontier. Finally it puts in perspective the region inside South America, where it passes suddenly from periphery to center of the continent.
Keywords: Amazon, Geopolitics, Public Policies, Strategies.
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NÃO SE FALA DA Amazônia como do Middle West dos Estados Unidos, das ilhas da Indonésia ou de outra região qualquer do mundo: em vez de observá-la objetivamente, de avaliar seus potenciais e suas limitações, de analisar as condições de vida dos seus habitantes, entra-se logo em considerações fortemente afetivas. Estas são inspiradas, ora por uma visão excessivamente pessimista, derivadas das lendas do "inferno verde", ora demasiadamente otimistas, vislumbrando nela imensas riquezas ainda ocultas, um "eldorado" ameaçado pela cobiça externa, seja ela estrangeira ou de outras partes do Brasil (geralmente o paulista no papel de vilão). É tempo de deixar de lado essas abordagens ultrapassadas, que enviesam tantos discursos sobre a Amazônia, e de tentar definir melhor a situação real da região no contexto nacional, em um momento onde as políticas para a região e a sua posição em relação ao resto do continente estão sendo reavaliadas.
Tratar-se-á, portanto, primeiro de analisar o peso real da Amazônia no Brasil, em termos econômicos e humanos. Em seguida, avaliar as ações públicas na Amazônia, cuja linha diretriz, apesar das mudanças políticas e de divergências internas, parece ser de mantê-la no papel de fronteira de expansão. Finalmente, em um momento onde os países da América do Sul se redescobrem, pois deixam de olhar separadamente para o Norte e começam a se aproximar de seus vizinhos, cabe repensar a situação da Amazônia, que passa subitamente de periferia do Brasil a centro do continente.

O peso real da Amazônia no Brasil
Uma maneira simples de abordar uma reavaliação da situação da Amazônia é começar por medir, por meio de vários indicadores territoriais e sociais, o que ela representa no conjunto nacional. Uma seleção de tais indicadores, de várias ordens (Figura 1), mostra a clara defasagem existente entre a superfície ocupada pela Amazônia – mais da metade do país – e o seu peso econômico e social, bem menor: se ela representa 60% da superfície do Brasil, seu PIB não passa de 5%; ela reúne apenas 10% da população urbana, 12% da população total e um pouco mais – 14% – dos migrantes recentes, das estradas, do número de municípios. O único indicador, pouco invejável, para o qual a Amazônia supera a sua cota de território, é o número de mortos em conflitos fundiários…



Em termos de população, a Amazônia legal continua sendo a parte menos povoada do país: mesmo tendo a região ganhado treze milhões de habitantes de 1970 a 2000 (ou seja, aumentou 172%, enquanto o país aumentava 82%), ela continua representando apenas um pouco mais de 12% do total (contra 8% em 1970) e as densidades continuam baixíssimas: a Amazônia legal só tem 4,2 habitantes por km2 (e o Estado de Amazonas apenas 1,8) enquanto a densidade nacional é de 20 habitantes por km2. Devido a essas baixas densidades, e a pressão pioneira vinda do Sul-Sudeste, a Amazônia continua sendo a grande reserva de espaço do país, a sua última fronteira de migração e de expansão.
Usando um critério mais qualitativo, o número de pesquisadores registrados no CNPq, a Amazônia também aparece numa situação difícil: com 3,8% dos pes-quisadores e 2,7% dos pesquisadores doutores (indicadores para os quais o estado de São Paulo representa respectivamente 29,7% e 34,7% do total nacional), ela é a última colocada entre as cinco regiões brasileiras, um fato que pesará sobre o seu futuro, já que a formação de elites científicas regionais é um requisito para um desenvolvimento sustentável.
Porém, a Amazônia está mudando, principalmente através dos impactos desencadeados pela abertura das rodovias que permitiram, a partir dos anos de 1960, a chegada de migrantes vindos de outras regiões e, com ela, vários tipos de efeitos, alguns claramente positivos, outros nem tanto. A construção dessas rodovias – mas, também, a melhoria das hidrovias e das redes de telecomunicações – está mudando profundamente a situação da Amazônia, econômica e estrategicamente: apesar de todos os seus atrasos, ela pode achar nessa mudança novo ímpeto.
A chegada das rodovias tem transformado profundamente a organização regional da região, até então definida em volta dos rios (Figura 2). Passou-se de um espaço reticular a outro, da Amazônia estruturada em função das vias navegáveis, drenando os fluxos para o Leste, a uma região dominada pelas estradas que levam ao Sul-Sudeste. E os "nós" dessas duas redes, as cidades que polarizam o espaço, não são os mesmos, o que levou à decadência de algumas e à ascensão de outras, uma redistribuição que alterou profundamente as hierarquias urbanas da região.



Cabe aqui uma ressalva: a natureza reticular da organização territorial da Amazônia, acoplada às baixas densidades de ocupação humana, faz com que imensos espaços permaneçam vazios ou quase vazios. Fixando, em uma única imagem (Figura 3), a localização precisa de todos os episódios da história econômica da Amazônia até hoje, Roberto Schmidt de Almeida e Miguel Ângelo Campos Ribeiro revelaram que o espaço realmente aproveitado se resume a corredores que acompanham a rede hidroviária e, secundariamente, a rede rodoviária. Esse fato deve ser levado em consideração quando se trata a Amazônia como uma região de planejamento "normal", onde as unidades territoriais são polígonos justapostos, delimitados por fronteiras claras, sem vazios nem superposições. Na realidade, a maior parte do território da Amazônia ainda permanece intacto, especialmente ao norte da calha do Amazonas, enquanto as franjas meridionais são progressivamente incorporadas ao espaço nacional, acompanhando as diferentes etapas do avanço da fronteira agrícola capitalizada, com caracteres bem distintos.
Nesse contexto histórico, como se situam as políticas públicas praticadas nas últimas décadas?

A Amazônia, fronteira de expansão do Brasil?
Os programas Brasil em Ação (PPA 1996-1999) e Avança Brasil (PPA 2000-2003), realizados respectivamente durante o primeiro e o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, faziam parte de uma estratégia de integração da Amazônia ao espaço produtivo brasileiro e de consolidação da política de integração regional da América do Sul. Para reduzir os gargalos detectados, recursos consideráveis foram aplicados.
Os principais projetos do programa Brasil em Ação visavam à recuperação das estradas BR 364 (Brasília-Acre) e BR 163 (Cuiabá-Santarém); o asfaltamento da BR 174 (Manaus – Boa Vista); a implementação das hidrovias do Araguaia-Tocantins e do Madeira; o gasoduto de Urucu e a linha de alta tensão conectando Tucuruí a Altamira e Itaituba.
O programa Avança Brasil, já no segundo mandato, concentrava os investimentos previstos para a Amazônia legal em quatro corredores multimodais de transportes, totalizando 3,5 bilhões de dólares. Mais de 50% eram destinados ao corredor Araguaia-Tocantins, cerca de 30% para o corredor Sudoeste, 15% para o corredor Oeste-Norte e 5% para o corredor Arco Norte. A estratégia territorial global para a implantação destas ações visava à incorporação efetiva dos territórios de sua parte mais ocidental ao Sul-Sudeste do país, tomando como eixos principais as hidrovias e duas rodovias norte-sul, Cuiabá-Santarém e Porto Velho – Manaus – Boa Vista – Venezuela.
Frente a esses grandes projetos, a reação tinha sido fortíssima, porque esses eixos novos deviam atravessar regiões até então intactas e, para algumas, afetadas por uma estação seca bastante longa, os riscos de fogo eram muito sérios. De acordo com Nepstad et al. (2000), as obras de infra-estrutura de transportes, previstos no plano Avança Brasil, deviam provocar impactos graves em quase 187.500 km2, caso se adotasse como limite do seu efeito provável em 50 km de cada lado das estradas previstas.
O setor ambiental do governo encontrou-se então no meio de uma tempestade, recebendo de um lado apoios, dentro e fora do país, e, de outro, fortes críticas. Circulavam nas redes mundiais informações sobre os progressos e retrocessos dessa política, e pressões permanentes eram exercidas sobre as ações governamentais. Esperando que aparecessem elementos mais sólidos aos serviços das políticas de conservação, essas pressões serviam para travar a implantação das infra-estruturas e para reduzir os impactos. Contribuíam a este fim as ações do Ministério Público federal ou dos estados, baseadas em leis que permitiam respaldar a ação popular, e algumas obras de grande porte, como a hidrovia Araguaia-Tocantins, foram embargadas.
Esperava-se, portanto, com grande interesse, a publicação dos projetos inscritos no Programa Plurianual (PPA) 2004-2007, que podia alterá-lo sensivelmente. A decepção foi viva: o PPA contém todos os projetos odiados pelos movimentos ambientalistas (Figura 4). A prioridade dada às estradas e aos equipamentos hidroelétricas é reforçada, o papel das hidrovias e das ferrovias reduzido, e os investimentos previstos para o gasoduto de Urucu, muito baixos. É verdade que as ferrovias são agora privadas e que a Petrobras tem as suas próprias condições de financiamento e de empréstimo, mas pode-se lamentar que à via aquática e ao uso do gás, respectivamente meio de transporte e fonte energética "limpos", tenham sido preferidas as infra-estruturas de impactos ecológicos mais fortes, as estradas e barragens.
Entre os investimentos diretos do Estado federal, os mais significativos são da área energética, o desenvolvimento da usina de Tucuruí (1,814 milhões de reais), a extensão da rede interconectada do Mato Grosso a Rondônia e ao Acre (1,056 milhões de reais), o equipamento para Manaus (915 milhões de reais) e de diversos equipamentos de menor porte nas cidades e as povoações de cada estado. As estradas vêm logo atrás, a BR 156 (ligando Brasil à Guiana), a BR 230 (Transamazônica), a BR 364 e a BR 319 ligando respectivamente ao Acre e a Manaus, prolongando e facilitando a penetração para o noroeste.
A construção da barragem de Belo Monte (cuja potência instalada prevista é quase igual à de Itaipu), várias vezes adiada devido à oposição dos movimentos ecologistas, é dotada apenas de dez milhões de reais, mas 3,750 milhões de reais são inscritos no título dos investimentos em parceria. O mesmo ocorre para as barragens do Madeira e do Tocantins, cujos custos seriam compartilhados com as empresas concessionárias, e o asfaltamento da estrada BR 163, Cuiabá-Santarém, detestada pelos "verdes" mas ardentemente desejada pelos produtores de soja, que vêem nela o meio de escoar a sua produção para o norte, em vez fazer um longo desvio, via os portos do Sul.
Se as somas previstas para esses projetos são impressionantes, outro programa as faz parecerem pequenas (a tal ponto de não poder ser desenhado na escala real no mapa), os 4,2 bilhões de reais previstos para expandir as linhas de alta tensão da usina de Tucuruí até Macapá e Manaus. As dificuldades da obra são tamanhas, haja vista a localização de ambas as cidades, na outra margem do Amazonas (que deverá, portanto, ser cruzado) e as somas em jogo tão grandes que se pode duvidar da concretização deste projeto (que nunca tinha sido mencionado antes) nos quatro anos do Plano.
Trata-se, por conseguinte, de um conjunto de projetos de cunho claramente "desenvolvimentista", não muito conformes aos princípios anunciados durante a campanha presidencial que prolongam, sem ambigüidade, os esforços do governo anterior e não levam muito em conta as suscetibilidades dos movimentos ambientalistas.
Tentando sintetizar os efeitos espaciais das políticas públicas, o mapa (Figura 5) distingue situações diversas. Dentro de estruturas definidas principalmente pelo quadro físico e pela repartição atual duma população ainda em fase de conquista pioneira, as políticas públicas na Amazônia tomam três formas principais: política de conservação e política social na calha dos rios e na Amazônia ocidental, política de produção nas periferias sul e leste, política e penetração ao longo de certas hidrovias e rodovias. A resultante territorial das interações entre um quadro ainda maleável e essas políticas seria o seguinte:
A velha Amazônia dos rios, no centro da bacia, continua ignorada pelas políticas públicas, em sua maior parte, com a exceção notável das cidades (onde, é preciso lembrar, vivem mais de 60% da população regional).
O arco externo da Amazônia legal já está incorporado ao espaço nacional, os planaltos que eram cobertos pelos cerrados e pela floresta decídua foram transformados por uma potente economia agropecuária em zona de produção e de escoamento de grãos.
Uma franja intermediária, na parte dianteira da frente de expansão, encontra-se em uma situação mais indecisa, diversos cenários podem ser imaginados, dependendo do rumo que se quer dar às políticas públicas para a Amazônia.
O norte e o oeste da região ainda formam um espaço de reserva, no momento quase que unicamente afetado por políticas de conservação. Será o seu destino de continuar nesse papel?
Finalmente, o fato novo é a criação de três novos eixos de penetração rumo ao norte, um principal ao longo da BR 163, dois outros menores de Manaus até a fronteira da Venezuela e do Amapá à Guiana francesa, ambos podendo convergir para fechar um futuro "arco norte", abarcando as Guianas. Qualquer política para a Amazônia, seja ela de conservação ou de desenvolvimento sustentável integrado, deverá levar em conta essa tendência.

A Amazônia, de periferia do Brasil a centro do continente
Convém aqui lembrar que a Amazônia brasileira, mesmo sendo tão extensa, não é toda a bacia Amazônica (Figura 6): se ela de fato representa 62% do total, os 38% restantes pertencem a oito países vizinhos, hoje seus parceiros na OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).



E, de fato, entre os fatores mais susceptíveis de produzir efeitos profundos na região, a abertura de ligações com os países vizinhos, até então praticamente impossíveis, é um dos mais potentes. Dos vizinhos amazônicos do Brasil, só a Colômbia não é hoje acessível por um eixo rodoviário (e não o será tão cedo, se a atual situação político-militar se prolongar). Vale notar que os eixos imaginados há pouco mais de vinte anos pelos teóricos da geopolítica militar (notadamente o general Meira Mattos, 1980), foram quase todos realizados, mesmo consideran-do-se que o contexto mudou radicalmente, já não se trata mais de conquista e de satelitização, mas de cooperação transfronteiriça e de integração continental.
Obviamente, essa transformação não converterá inteiramente a região, mas ela tem efeitos discriminantes: alguns eixos foram privilegiados, outros deixados de lado. As infra-estruturas planejadas e financiadas pelo Programa Brasil em Ação concentraram-se em boa parte ao longo de dois eixos, um deles norte-sul, o Araguaia-Tocantins e o outro, aquele que liga São Paulo (e, portanto, o Mercosul) ao Caribe, via Cuiabá, Manaus e Boa Vista. Os investimentos alocados es-tão configurando um novo eixo continental que oferece uma alternativa – passando pelo território brasileiro – ao principal eixo Norte-Sul atual, a Carretera Pana-mericana que conecta a Patagônia ao Panamá.
No estudo dos eixos de integração na América do Sul realizado pelo IIRSA (Figura 7) para selecionar os que mereceriam maior atenção e investimentos, nota-se que a Amazônia é cruzada por vários eixos, seja na direção leste-oeste (associando a rede fluvial amazônica a rodovias para atingir o Pacífico), seja de norte a sul, graças à mesma rede e às rodovias ligando o Brasil às Guianas. A Amazônia torna-se o centro do continente, em vez de ser a periferia dos países que a compõem, mesmo não sendo a parte do continente onde passam os fluxos mais densos, os quais passam mais ao sul.



Finalmente, mesmo com a temeridade de tentar resumir cinco séculos de história em uma imagem sintética (Figura 8), pode-se mostrar os deslocamentos do principal eixo de propagação e de inovação na região, os que foram e o que serão provavelmente os futuros "pontos quentes" da região.



Da chegada dos primeiros colonos europeus até os anos de 1960 – o período mais longo na história plurissecular da Amazônia – o eixo principal de penetração foi o rio Amazonas e seus afluentes, sempre percorridos da foz para montante.
Nos anos de 1960, o eixo principal passou a ser uma direção sul- norte, ao longo da rodovia Brasília-Belém.
Nos anos de 1970, o fluxo principal ia do leste para o oeste, ou do sudeste para o noroeste, ao longo das novas rodovias, BR 364 e Transamazônica.
Nos anos de 1980 e no início dos anos de 1990, por falta de uma política amazônica bem definida, diversas direções de propagação se misturavam (sul- norte, oeste- leste, leste-oeste), uma indecisão que reflete bem as incertezas dessa "década perdida".
Finalmente, retoma-se hoje uma tendência a um movimento sul- norte, ao longo do eixo Araguaia-Tocantins, da BR 163 e dos eixos Manaus-Venezuela e Amapá-Guiana Francesa.
A Amazônia está, portanto, vivendo um momento de mutações, o qual transforma até as suas dimensões. Não no sistema métrico, onde ela mantém os milhões de metros cúbicos de água, de quilômetros quadrados de florestas e de milhões de espécies ainda desconhecidas, que fazem dela uma das principais zonas de biodiversidade do planeta. Mas na métrica mais sutil do peso demográfico, econômico e social, na topologia dos transportes, onde o tempo de percurso con-ta mais do que o espaço bruto, e as ligações efetivas mais do que as proximidades.

Bibliografia
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Texto recebido em 10 de janeiro de 2005 e aceito para publicação em 26 de janeiro de 2005.


Hervé Théry é diretor de pesquisa no CNRS-Credal e diretor da Unidade Mista de Pesquisa ENS/IRD Temps (Território e Globalização nos Países do Sul). Entre diversas funções exercidas, foi diretor do GIP Reclus, professor na École Normale Supérieure de Paris e diretor de sua seção de geografia. Atualmente, é pesquisador convidado no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília – CDS. O seu Atlas do Brasil, disparidades e dinâmicas do território brasileiro (em colaboração com Neli Aparecida de Mello) está no prelo na Editora da Universidade de São Paulo (Edusp).